UM POUCO SOBRE A TEORIA DO CONTO


O CONTO: UM GÊNERO?
A unidade de efeito (Poe)

A teoria de Poe sobre o conto recai no princípio de uma relação: entre a extensão do conto e a reação que ele consegue provocar no leitor ou o efeito que a leitura lhe causa. É o que Poe expõe no prefácio à reedição da obra Twice-told tales, de Hawthorne, em texto intitulado “Review of Twice-told tales”, de 1842. Aí o contista norte-americano parte do pressuposto de que “em quase todas as classes de composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância”. A composição literária causa, pois, um efeito, um estado de “excitação” ou de “exaltação da alma”. E como “todas as excitações intensas”, elas “são necessariamente transitórias”. Logo, é preciso dosar a obra, de forma a permitir sustentar esta excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve demais, esta excitação ou efeito ficará diluído.

Torna-se imprescindível, então, a leitura de uma só assentada, para se conseguir esta unidade de efeito. No caso do poema rimado, não deve “exceder em extensão o que pode ser lido com atenção em uma hora. Somente dentro deste limite o mais alto nível de verdadeira poesia pode existir”. É natural que entre estas formas, poema rimado/conto/romance, haja uma hierarquia, em função deste critério: qual o que mais favorece a leitura de uma só vez ou, como popularmente se diz, de um só fôlego?

A resposta de Poe é que “podemos continuar a leitura de uma composição em prosa, devido à própria natureza da prosa, muito mais longamente que podemos persistir, para atingir bons resultados, na leitura atenta de um poema. Este último, se realmente estiver preenchendo as expectativas do sentimento poético, induz a uma exaltação da alma que não pode ser sustentada por muito tempo”. E explica: “Todas as excitações intensas são necessariamente transitórias. Desta forma, um poema longo é um paradoxo. E sem unidade de impressão, os efeitos mais profundos não podem ser conseguidos”.

Da mesma forma que o poema rimado é superior ao conto no que respeita às suas potencialidades de conquistar o efeito único, o conto difere do romance, pois este, “como não pode ser lido de uma assentada, destitui-se, obviamente, da imensa força derivada da totalidade. Interesses externos intervindo durante as pausas da leitura, modificam, anulam ou contrariam em maior ou menor grau, as impressões do livro. Mas a simples interrupção da leitura será, ela própria, suficiente para destruir a verdadeira unidade”. Não é o que acontece na leitura do conto: “no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora de leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção”.

Assim, tendo o contista “concebido, com cuidado deliberado, um certo efeito único e singular a ser elaborado, ele então inventa tais incidentes e combina tais acontecimentos de forma a melhor ajudá-lo a estabelecer este efeito preconcebido. Se sua primeira frase não tende à concretização deste efeito, então ele falhou em seu primeiro passo. Em toda a composição não deve haver nenhuma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não esteja a serviço deste desígnio preestabelecido”.

Estas considerações atentam já, sistematicamente, para uma característica básica na construção do conto: a economia dos meios narrativos. Trata-se de conseguir, com o mínimo de meios, o máximo de efeitos. E tudo que não estiver diretamente relacionado com o efeito, para conquistar o interesse do leitor, deve ser suprimido. Tanto são importantes estas observações sobre a teoria do conto, que serão mais tarde retomadas por Poe em “The philosophy of composition” (1846). Ele continua aí a defender a totalidade de efeito ou a unidade de impressão que se consegue ao ler o texto de uma só vez, sem interrupções, na dependência direta, pois, da sua duração, que interfere na excitação ou elevação, ou na intensidade do efeito poético.

Para tanto, ao iniciar o processo do escrever estórias, é o efeito que o autor deve levar em conta: qual o efeito que pretende causar no leitor? A primeira pergunta que se faz é: “Dentre os inúmeros efeitos ou impressões a que o coração, o intelecto ou (mais geralmente) a alma são suscetíveis, qual deles, neste momento, escolherei?” O que pretende o autor? Aterrorizar? Encantar? Enganar? Já havendo selecionado o efeito, que deve ser tanto original quanto vívido, passa a considerar a melhor forma de elaborar tal efeito, seja através do incidente ou do tom: “se por incidentes comuns e um tom peculiar, ou o contrário, ou por peculiaridade tanto de incidentes quanto de tom”. E em seguida busca combinações adequadas de acontecimentos ou de tom, visando a “construção do efeito”.

Poe ilustra este percurso com a sua própria experiência na construção do poema “The Raven”, determinando as etapas de execução de um projeto: a extensão ideal de mais ou menos cem versos, o tom de tristeza, os recursos necessários para se atingir este tom: uso do refrão, tema da morte, espaço do quarto, símbolo do corvo, ambiente soturno, personagem sofrendo a ausência da amada morta, o desfecho com pergunta final: ainda veria a sua amada no outro mundo?

Se o poema – ou qualquer outra obra – for grande, haverá naturalmente uma divisão de leitura. No entanto, para cada período serão mantidas as mesmas exigências, com o objetivo de fisgar o leitor: manter a tensão sem afrouxá-la, para não dar ensejo a interrupções. Daí a conclusão lógica a que chega Poe: um poema longo nada mais é que “uma sucessão de (poemas) breves”, isto é, de efeitos poéticos breves que se sucedem. “Há um claro limite, quanto à extensão, para todos os trabalhos de arte literária – o limite de uma única assentada” – e continua: “embora em alguns casos de prosa, como no de Robinson Crusoé, que não exige unidade, este limite seja ultrapassado com vantagens”.

Neste caso, o desfecho (dénouement) torna-se também um elemento importante, no sentido de colaborar para o efeito que se deseja: “todo enredo, digno desse nome, deve ser elaborado para o desfecho, antes de se tentar qualquer coisa com a caneta. É somente com o desfecho constantemente em vista que podemos conferir a um enredo seu indispensável ar de conseqüência, fazendo com que os incidentes e, principalmente, em todos os pontos, o tom tendam ao desenvolvimento da intenção”.

Aliás, Julio Cortazar, no seu estudo sobre Poe, ressalta esta intenção de domínio sobre o leitor e suas relações com o orgulho, o egotismo, a inadaptação ao mundo, a “anormalidade”, a “neurose declarada” do contista e teórico Poe, que, naturalmente, interfere na construção das suas personagens e situações. O fato é que a elaboração do conto, segundo Poe, é produto também de um extremo domínio do autor sobre os seus materiais narrativos. O conto, como toda obra literária, é produto de um trabalho consciente, que se faz por etapas, em função desta intenção: a conquista do efeito único, ou impressão total. Tudo provém de minucioso cálculo. O poema não deve, pois, ser longo demais e nem breve demais. Poe situa-se, equilibradamente, no meio: “um poema breve demais pode produzir uma impressão vívida, mas nunca intensa e duradoura”. Sem uma certa continuidade de esforço, “sem uma certa duração ou repetição de propósitos a alma nunca é profundamente atingida”. Por isso tudo, “brevidade extrema degenerará em epigramatismo; mas o pecado da extensão extrema é ainda mais imperdoável”.

Estas mesmas propostas de leitura e teoria do poema Poe aplica à leitura do conto em prosa, definindo a sua medida de extensão – ou tempo de leitura: “referimo-nos à prosa narrativa curta, que requer de meia hora a uma ou duas horas de leitura atenta”.

BIBLIOGRAFIA
GOTLIB, B. N. Teoria do conto. 9 ed. São Paulo: Ática, 1999. Série Princípios. p. 32-37.

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