O PONTO DE VISTA OU FOCO NARRATIVO



[...] Diz respeito ao prisma adotado pelo narrador de conto, novela e romance. Corresponde à indagação: quem narra? e de que perspectiva? [...] O narrador é o contador de histórias, espécie de alter-ego ao qual o escritor transfere a incumbência de narrar. É que no ato de compor a narrativa, o escritor se desdobra numa terceira pessoa, num "ele" que assume a função de relatar, de forma que o "eu" do narrador não se confunde com o "eu" do escritor; este, despe-se da sua individualidade civil para vestir um outro "eu", tão inventado quanto as histórias narradas.

[...] De qualquer modo, o "eu" do narrador diferença-se do "eu" do escritor, à semelhança do "eu" lírico e o "eu" do poeta: a voz que fala é a do escritor, por meio da voz alheia, criada para a ocasião e de acordo com o que pretende no momento. De onde a distância psicológica ser aferível em dois planos: 1) entre o escritor e o narrador; 2) entre o narrador e a história.

[...] O primeiro foco narrativo a considerar é o do escritor/narrador onisciente: diminuída a distância entre o autor e o narrador, e estabelecida a fusão entre ambos, o ponto de vista onisciente é aquele em que o autor/narrador, qual um deus, tudo conhece da história e tudo pode esquadrinhar, inclusive a vida mental das personagens. [...] Em suma, o ponto de vista onisciente pertence ao narrador, mais do que ao autor, mas a distância entre os dois pode reduzir-se ao mínimo sem haver comprometimento do aspecto literário do texto.


O segundo ponto de vista é o da 1ª  pessoa (do singular ou do plural), assumido: 1) pela (s) personagem (ens) central (is); 2) por uma personagem secundária; 3) pelo narrador-testemunha. [...] No primeiro caso, o protagonista narra a sua história e reporta-se às demais personagens na razão direta da sua participação; no segundo, a incumbência se desloca para um dos figurantes menores, mas a história gira em torno de uma outra personagem; no último caso, o narrador torna-se testemunha, ou seja, simples espectador de conflitos alheios. Quando não compreende claramente o que presencia, chama-se narrador ingênuo ou inocente (como o idiota que narra a primeira parte de O som e a Fúria, de William Faulkner).

[...] O foco narrativo na 3ª pessoa igualmente se fragmenta em 3 tipos, conforme se trate de personagem central, de personagem secundária, ou de narrador-testemunha. A meio caminho entre a onisciência e a 1ª pessoa, reflete uma considerável distância entre o autor e o narrador, e entre este e a história: o ângulo visual está reduzido a alguém que narra, quer na qualidade de protagonista, quer de personagem secundária, quer de observador. [...] Este ponto de vista distingue uma personagem capaz de narrar, que funciona como uma espécie de disfarce do autor, na medida em que este lhe delega a tarefa de visualizar a história que almeja transmitir, mas ao mesmo tempo lhe concede o privilégio de enquadrar tudo na sua óptica pessoal.


[...] Outras noções, porém, se integram no patrimônio crítico, como a do "narrador digno de confiança" (narrator reliable), "quando fala ou age de acordo com as normas da obra (isto é, as normas do autor implícito)", e "narrador indigno de confiança ou suspeito" (narrator unreliable), quando não se comporta segundo as normas da obra, vale dizer, "na medida em que é passível de errar"; todavia, a "suspeição não significa mentir, embora o recurso aos narradores deliberadamente mentirosos tenha sido muito usado por modernos romancistas (A Queda, de Camus; O filho natural, de Calder Willinghan, etc.).

[...] O narrador onisciente constitui, genérica e historicamente, o ponto de vista mais difundido, por certo em razão do primitivo impulso, ainda enraizado, que convertia uma pessoa em contador de histórias. Guerra e paz (Tolstoi), Os Maias (Eça de Queiros), A montanha mágica (Thomas Mann), exemplificam à perfeição tal enfoque.

[...] O emprego da 1ª pessoa acarreta uma limitação do horizonte narrativo, uma vez que os acontecimentos são divisados de um só ângulo; em compensação, empresta verossimilhança e intensidade ao enredo. Frequentemente no romance epistolar dos séculos XVII e XVIII e na ficção moderna, quer no singular, quer no plural (Osman Lins, em Nove, Novena), em presença de outros focos, ou autonomamente, e na proporção em que o "realismo" onisciente cede lugar a um realismo relativista. Em qualquer caso, decorre dum esforço de autenticidade por parte do autor, que se manifesta através da distância aberta pela máscara do "eu" do narrador. Resultante de acendrado ideal de fazer que a obra se escreve por si própria, põe ênfase no ponto de vista do narrador, não do escritor. Por outro lado, assinala a falência do pressuposto de que o escritor tudo pode abranger com o seu olhar: o caos se insinua onde parecia reinar a ordem cósmica. Dom Casmurro (de Machado de Assis) explora o processo em que a personagem secundária (seundária apesar de o título do romance lhe dizer respeito) exerce as funções de narrador, ao passo que Aparição, de Vergílio Ferreira, nos mostra uma narrativa conduzida pelo protagonista-narrador.


O foco narrativo da 3ª pessoa avizinha-se da onisciência, dado que a personagem não é o narrador. Trata-se de uma onisciência relativa, na medida em que o autor/narrador circunscreve preconcebidamente o espaço coberto pela visão. De qualquer forma, no interior dessa realidade limitada, pratica livremente o seu poder demiúrgico. Mercê da contiguidade entre a perspectiva onisciente e a da 3ª pessoa, alguns autores se referem à segunda como onisciência relativa ou seletiva (quando focaliza uma personagem), ou múltipla (quando privilegia várias).

[...] Por outro lado, o ponto de vista na 3ª pessoa, sobretudo quando seletivo, aparenta-se a uma história na 1ª pessoa "em que se mudasse o 'eu' para 'ele' ou 'ela', e o ponto de vista se tornasse meio externo, meio interno, com o autor na função de narrador, e a personagem na de quem vê". Mais adequada ao conto e às narrativas planas, nem por isso a 3ª pessoa relativa deixa de ser utilizada no romance, como é o caso de O retrato de um artista quando jovem (de James Joyce), narrado na perspectiva do protagonista, Stephen Dedalus. Quanto à 3ª pessoa múltipla, ajusta-se melhor ao universo do romance, por aproximar-se da onisciência total, como é o caso de Fogo morto (de José Lins do Rego), cujas três partes são focalizadas de prismas diferentes, conforme as personagens que prevalecem.

[...] Os vários pontos de vista constituem truques, disfarces ou encarnações teatrais, com que o autor dissimula que conhece tudo quanto integra a narrativa. Mesmo quando a personagem espalma a sua autonomia, o ficcionista continua a exercer o poder de mando: sabe-a autônoma, pois assim a concebeu e estruturou. Enfim, onisciente porque consciente dos materiais da ficção: o Homem, a Natureza, o Tempo, a História.

Obs: Voltar-se-á ao assunto, enfocando outros aspectos, segundo outros estudiosos do tema.


RETIRADO DE:
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

O MORRO DOS VENTOS UIVANTES E SUAS MUITAS VERSÕES PARA NO CINEMA



Até onde se sabe já foram feitas dez adaptações cinematográficas de O morro dos ventos uivantes por diferentes países. Cada uma com suas particularidades. A primeira foi feita em 1920 com a técnica rudimentar do cinema mudo da época, cobrindo o enredo todo do livro com duração de 1h30min, entretanto não se sabe se ainda existem cópias do filme. 

A segunda e mais lembrada, feita em 1939 (do vídeo acima), por William Wyler e estrelada por Lawrence Olivier e Merle Oberon, foi marcada pelo clima tenso nos bastidores. Indicada ao Oscar no ano seguinte, acabou perdendo a estatueta para E o vento levou, restando-lhe o Oscar de Melhor Fotografia em Preto e Branco, tornando-se um clássico.  É desta versão a inspiração de Kate Bush para escrever e cantar sua música Wuthering Heights. Esta versão, porém, deixa bastante a desejar em relação ao enredo do livro, pois elimina toda a terceira geração da história, ou seja, a geração mais jovem formada por Cathy, Linton e Hareton, centrando a narrativa no triângulo Heathcliff, Catherine e Edgar Linton.

Além disso, o perfil psicológico de Heathcliff não apresenta a mesma força e densidade que possui no romance de Emily Bronte, o qual é marcado por suas constantes mudanças e turbulências, confundindo o leitor. Heathcliff é um personagem que ao mesmo tempo que encanta, desperta também o ódio, pois nunca se sabe o que esperar de seu gênio inquieto e instável.

Há também uma terceira adaptação parcial da obra feita em 1954, com o título de Os escravos do rancor, feita pelo diretor espanhol Luis Buñuel, ambientada no México do século XIX. 

A quarta adaptação é de 1966 realizada em terras indianas, mais precisamente em Bollywood com o título de Dil Diya Dard Lyia, além de ser inspirada na versão de 1939, do cineasta americano William Wyler.

Uma quinta versão da obra de Emily foi feita em 1970, intitulada O solar dos ventos uivantes e faz supor que Heathcliff seja um filho bastardo do Sr. Earnshaw, sendo, portanto, meio-irmão de Catherine. Este é um detalhe que o romance não deixa claro.

A sexta versão aparece em 1985 na França, com o título de Hurlevent e com direção de Jacques Rivette, trazendo algumas mudanças nos nomes das personagens e na abordagem psicológica do enredo. 


A sétima adaptação denominada Arashi ga oka vem em 1988 pelas mãos do cinema japonês. A trama gira em torno de um casal profano que entra em uma comunidade, mas que em algum momento é expulso devido a seu caráter marginal. 

Uma outra versão é lançada em em 1991 com o título Hihintayin Kita sa Langit, pelo cinema filipino. Considerada fiel à obra original, sofreu alterações de nomes e cenários para melhor se adaptar ao público local. 

A nona adaptação para as telas de O morro dos ventos uivantes é de 1992, estrelada por Ralph Fiennes (que estreava no cinema) e Juliette Binoche, que fez o papel da Cathy mãe e da Cathy filha (vídeo abaixo). Trata-se de uma versão mais fiel do livro, dando-nos um painel mais amplo da história e muito bem feita.

A décima versão feita em 2011, foi uma produção bastante tumultuada com várias trocas de elenco e de diretores. O enredo bastante enxuto em relação ao original, tal qual a versão de 1939 também eliminou uma geração inteira do original de Emily, mas o filme chama a atenção pela bela fotografia.