DA SÉRIE DICAS DE LEITURA - DOS DESASSOSSEGOS E FILOSOFIAS DE FERNANDO PESSOA - SOBRE O TÉDIO



Para quem gosta de Filosofia e vários assuntos num livro só.

Trata-se de uma das maiores obras de Fernando Pessoa e é considerado o livro da vida do poeta. Escrito num período de mais de vinte anos, a obra só foi publicada 47 anos depois da morte de Pessoa. Com mais de 500 fragmentos, versa sobre temas de teor reflexivo, como por exemplo, "o absurdo da existência, a inadaptação à realidade e a relativização das verdades,  incluindo a ideia de Deus e do próprio sujeito, que se sente disperso por força de tanto pensar", segundo as palavras do professor Caio Gagliardi, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Não se deve deixar de mencionar que a obra é assinada por Bernardo Soares, um dos 4 heterônimos do poeta, além de Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.  Sem seguir uma sequência linear, o próprio poeta afirmou que o livro era "inacabável" ou "interminável", isto é, continuaria sendo escrito se Pessoa ainda estivesse vivo e, assim até o fim de seus dias se não tivesse partido aos 47 anos. 

Também encontramos fragmentos em que são abordados temas como a solidão, a angústia existencial, a busca pelo sentido da vida, a reflexão sobre a condição humana e a escrita como forma de expressão e autoconhecimento.

No fragmento abaixo, de número 381 (sim, os fragmentos são numerados), o poeta discorre sobre o tédio da existência humana:

 381.

Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço, do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogênio e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.

Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende --- como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço --- nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.

O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.

O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.

E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trêmula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia em farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação. 

Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isso senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isto --- céu, terra, mundo, --- o que há em tudo isto não é senão eu! (PESSOA, p. 344-345,1999) 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIAS, A. Livro do desassossego, de Fernando Pessoa é publicado: <https://www.fflch.usp.br/44676>  Acesso em 20/03/24. 

PESSOA, F. Livro do desassossego. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 



DA SÉRIE DICAS DE LEITURA - CONTOS DE AMOR E DESAMOR





"O amor é um tema universal e eterno, e nenhum tratado de filosofia nem de moral me proíbe de me ocupar do universal e do eterno".  (Eduardo Wilde, no conto Assim)

Trata-se de uma agradável coletânea de contos da editora Agir (publicada em 2010) organizada por Flávio Moreira da Costa, abordando um dos temas mais universais da literatura: o amor e suas variantes. Dividido em seis sessões: Preliminares, Amores, Paixões, Casamentos, Amores II e Desamores, o livro traz contos dos mais diversos autores, como: Boccaccio, Poe, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Joseph Conrad, Katherine Mansfield, Dalton Trevisan, Tchekhov, Balzac, Stendhal, Maupassant, Eça de Queirós, Lima Barreto, James Joyce, D.H. Lawrence, Pirandello, Mario de Andrade, Mark Twain, entre outros.

E como não podia deixar de ser, o famoso conto, Giulietta e Romeo, de Luigi da Porto, o qual teria inspirado a história de amor mais conhecida da humanidade, escrita por Shakespeare, na peça Romeu e Julieta, aqui segundo o próprio Flávio Moreira da Costa,  publicado pela primeira vez no Brasil. 

Da seção Preliminares, segue um trecho de O diário de Adão e Eva, conto de Mark Twain, no qual ficam bem claras as diferenças de ambos os sexos em se tratando de sentimentos, desde os primórdios da humanidade. 

Parte I

Fragmentos do Diário de Adão

SEGUNDA-FEIRA
Esta nova criatura de cabelos longos vive me atrapalhando. Está sempre ao meu redor e me segue por todos os lados. Não gosto disto; não estou acostumado a ter companhia. Gostaria que ficasse com os outros animais... Hoje está nublado, o vento sopra do leste; acho que nós teremos chuva... Nós? De onde tirei esta palavra? --- Agora me lembro --- é a nova criatura quem a usa.

SEXTA-FEIRA
O processo de nomear continua intenso e sem qualquer controle, e não há nada que eu possa fazer. Eu tinha posto um ótimo nome no território, um nome musical e belo --- Jardim do Éden. Comigo mesmo, continuo a chamá-lo assim, mas já não posso fazê-lo abertamente. A nova criatura diz que ele é todo bosques e rochas e paisagens, e portanto não se parece de forma alguma com um jardim. Ela diz que se parece com um parque, e que não se parece com mais nada a não ser um parque. Portanto, sem me consultar, ele foi renomeado --- PARQUE DAS CATARATAS DO NIÁGARA. Isto me parece bastante arbitrário. E já tem um cartaz: NÃO PISE NA GRAMA. Minha vida já não tão feliz como antes.

DOMINGO
Suportei.

SEXTA-FEIRA
Ela diz que a serpente aconselhou-a a provar o fruto daquela árvore e disse que o resultado seria um conhecimento maior, mais refinado e nobre. Eu lhe disse que haveria um outro resultado, além deste --- isto introduziria a morte no mundo. Foi um erro da minha parte --- seria melhor se eu tivesse calado este comentário; ele serviu somente para dar-lhe uma ideia ---, ela poderia salvar o urubu doente e servir carne fresca aos desanimados leões e tigres. Eu aconselhei-a a se manter longe daquela árvore. Ela disse que não. Prevejo problemas. Vou emigrar.

Parte II

Diário de Eva

SÁBADO
Tenho quase um dia inteiro de vida, agora. Cheguei ontem. É o que me parece. E deve ter sido isso mesmo, pois, se houve um dia antes de ontem, eu não estava presente quando aconteceu, caso contrário me lembraria. Pode ser, é claro, que tenha acontecido, e que eu não tenha percebido. Muito bem; prestarei bastante atenção de agora em diante, e se alguns dias antes de ontem acontecerem, vou anotá-los. Será melhor começar direito e não deixar o registro ficar confuso, pois algum instinto me diz que tais detalhes serão importantes para um historiador num dia vindouro. Pois me sinto como uma experiência, me sinto exatamente como uma experiência; seria impossível uma pessoa se sentir mais uma experiência do que eu, portanto começo a ficar convencida de que é isto o que eu sou: uma experiência; apenas uma experiência, e nada mais. 
[...]
Segui a outra experiência por aí, ontem à tarde, a distância, para ver qual era a sua função, se houvesse. Mas não fui capaz de defini-lo. Acho que é um homem. [...] No começo tive medo, e começava a correr toda vez que se voltava para mim, pois pensava que iria me perseguir. Mas pouco a pouco descobri que apenas tentava sair de perto, e depois não me senti mais intimidada e comecei a segui-lo durante horas, a uns vinte passos de distância, o que o deixava infeliz e aflito. Por fim, ficou bastante nervoso e subiu numa árvore. [...]

DOMINGO
Ainda está lá em cima. Aparentemente descansando. [...] É uma criatura mais interessada no descanso do que em qualquer outra coisa, me parece. Eu ficaria exausta se descansasse tanto assim. [...]
Quando descobri que podia falar, senti um interesse renovado por aquilo, pois adoro falar; eu falo o dia todo, e durante o sono também, e eu sou muito interessante, mas, se eu tivesse alguém com quem falar, eu seria duas vezes mais interessante, e nunca pararia, se quisesse. 

DOMINGO DA SEMANA SEGUINTE
Durante toda a semana eu fiquei ao redor dele e tentei estabelecer relações. Tive que conversar sozinha, porque ele se sentiu intimidado, mas não me importei com isso. [...]

SEGUNDA-FEIRA
Esta manhã, disse-lhe meu nome, na esperança de que ele quisesse saber. Mas ele não se importou. É estranho. Se me dissesse seu nome, eu me importaria. [...]
Ele fala muito pouco. Talvez porque não seja muito inteligente e tenha consciência disso, tentando esconder este defeito. 
[...]
Não, ele não se interessou pelo meu nome. Tentei disfarçar minha decepção, mas acho que não consegui. [...]

TERÇA-FEIRA
Passei a manhã inteira trabalhando para melhorar o território; e propositalmente me mantive longe dele na esperança de que ele sentisse minha falta e se aproximasse. Mas ele não veio.
Ao meio-dia, parei o trabalho e fui brincar, esvoaçando por todos os lados com as abelhas e borboletas, e rolando por entre as flores, estas lindas criaturas que capturam e preservam o sorriso de Deus. Colhi algumas delas, arrumei-as em ramalhetes e guirlandas, vesti-me com elas enquanto saboreava meu almoço --- maçãs, é claro; então me deitei numa sombra e desejei-o e esperei-o. Mas ele não veio. 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Contos de amor e desamor. Org. Flávio Moreira da Costa. 1 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010.