CARTAS DE AMOR - ROMANCES PROTAGONIZADOS POR GRANDES NOMES DA LITERATURA - de Georg Sand para Alfred de Musset


Todas as cartas de amor são ridículas. [Álvaro de Campos]

George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin inspirado no nome do escritor Jules Sandeau, amigo e um de seus amantes), é considerada uma das, senão a maior escritora francesa. Nascida em Paris em 1804 numa época em que não se aceitava muito bem a presença das mulheres nos meios literários, foi obrigada a abrir mão de sua própria identidade após o lançamento de seu primeiro romance Indiana em 1832, obtendo grande sucesso. 

Para sua época, a escritora possuía hábitos bastante peculiares, digamos assim e, consideravelmente avançados para uma mulher, como fumar em público e vestir-se com roupas masculinas por divertimento e praticidade, segundo ela. Além disso, era bastante prolífica na produção de suas obras, possuindo também uma vida e um currículo amoroso invejáveis e um tanto quanto agitados, com paixões que exerceram forte influência em seus escritos. 

Em sua interessante lista de affairs constam entre outros, Jules Sandeau (de onde derivou seu pseudônimo),  o advogado Michel de Bourges (que lhe apresentou os ideais republicanos e socialistas), o músico Frédéric Chopin e o poeta Alfred de Musset, para o qual a missiva abaixo é endereçada algum tempo depois de uma desastrosa viagem dos amantes à Veneza, na Itália, provavelmente entre os anos de 1833-34, a qual resultou no final conturbado do relacionamento. 

Percebe-se na carta todos os clichês possíveis para expressar seu amor e o tom de mágoa e um certo sofrimento pela separação, apesar de pretender mostrar-se desejosa de manter a amizade com o poeta, pedindo-lhe que lhe envie pares de luvas novas e os versos escritos por ele (fica a dúvida se feitos para ela ou não). 

Para Alfred de Musset, 15-17 de abril de 1834.

"Meu querido anjo, não recebi qualquer carta de Antonio e estava num estado espantoso de ansiedade. Estive com Vicenza com o objetivo de saber como havias passado a primeira noite. Só soube que cruzaste a cidade pela manhã. Dessa forma, a única notícia que tive de ti foram as duas linhas que escreveste de Pádua, e não sei o que pensar. Pagelllo me disse que, se estivesses doente, com certeza Antonio nos teria escrito, mas sei que neste país as cartas se perdem ou ficam seis semanas a caminho. Estava desesperada. Por fim, recebi tua carta de Genebra. Oh, quanto te agradeço por ela, minha criança! Como ela é gentil e como me animou! É mesmo verdade que não estás doente, que estás forte e não sofres? Estou sempre com medo de que, por afeição, estejas exagerando tua boa saúde. Possa Deus dar-te saúde e proteger-te, meu cher petit. Isso me é tão necessário quanto a tua amizade. Sem um e a outra, não posso esperar ter sequer um único dia agradável. 

Não acredites, não acredites, Alfred, que eu possa ser feliz pensando que perdi teu amor. Que importa se fui tua amante ou tua mãe? Que meu amor ou minha amizade te hajam inspirado, que eu tenha sido feliz ou infeliz contigo, nada disso muda meu estado de espírito no momento. Sei que te amo, e isso é tudo. [Três linhas foram apagadas]. Cuidar de ti, preservar-te de todo mal, de qualquer contrariedade, cercar-te de divertimentos e prazeres, isso é tudo de que preciso e sinto falta desde que te perdi. Por que uma tarefa tão doce, que eu teria executado com tanta alegria, torna-se pouco a pouco tão amarga e por fim, subitamente, fica impossível? Que fatalidade transformou em veneno as poções que eu te oferecia? Como é possível que eu, que teria dado todo o meu sangue para proporcionar-te uma noite de repouso e paz, me tornei para ti um tormento, um castigo, um espectro? Quando essas lembranças atrozes me perseguem (e quando elas me deixarão em paz?), fico quase louca. Molho meu travesseiro com lágrimas. Ouço tua voz chamando no silêncio da noite. Quem irá me chamar agora? Quem precisará de minha vigília? Como usarei a força que acumulei para ti e que agora se volta contra mim? Oh, minha criança, minha criança! Como preciso de tua ternura e de teu perdão! Nunca peças meu perdão, nunca digas que me prejudicaste. O que sei eu? Não me lembro de nada, a não ser de que fomos muito infelizes e nos separamos. Porém sei, sinto que nos amaremos por toda a vida, de todo o coração e toda a inteligência, que tentaremos por meio de uma afeição sagrada [palavra apagada] curar-nos mutuamente dos males que nos causamos.

Ai de mim, não! Não foi culpa tua. Obedecemos a nosso destino, pois nossos temperamentos, mais impulsivos que os dos outros, nos impediram de aceitar a vida de enamorados quaisquer. No entanto, nascemos para conhecer e amar um ao outro, tem certeza disso. Se não fosse por tua juventude e pela fraqueza que tuas lágrimas me causaram, certa manhã, teríamos permanecido irmão e irmã...

Estás certo, nossos amplexos eram incestuosos, mas não o sabíamos. Lançamo-nos inocente e sinceramente nos braços um do outro. Bem, então, tivemos uma única lembrança desses amplexos que não tenha sido casta e sagrada? Em um dia de febre e delírio me censuraste por nunca ter-te feito sentir os prazeres do amor. Isso me causou lágrimas e agora estou convencida de haver alguma verdade naquele discurso. Estou bem contente que aqueles prazeres tenham sido mais austeros, mais velados do que os encontrarás em outro lugar. Pelo menos, não te lembrarás de mim quando estiveres nos braços de outra mulher. No entanto, quando estiveres só, quando sentires necessidade de rezar e chorar, pensarás em tua George, tua verdadeira companheira, tua enfermeira, tua amiga ou algo melhor do que tudo isso. Pois o sentimento que nos une é feito de tantas coisas que não se compara a qualquer outro. O mundo nunca irá compreendê-lo. Tanto melhor. Nós nos amamos e podemos ignorar o mundo...

Adieu, adieu, minha querida criança. Escreve-me sempre, eu te peço. Ah, se eu soubesse que chegaste a Paris em segurança e com saúde! 

Lembra que me prometeste cuidar de ti. Adieu, meu Alfred, amor da tua George. 

Peço-te que me mandes 12 pares de luvas acetinadas, seis amarelas e seis coloridas. Acima de tudo, manda-me os versos que escreveste. Todos eles, não tenho nenhum!"

A título de curiosidade, existe um volume, Correspondência de George Sand e Alfred de Musset, com algumas das cartas de amor trocadas entre eles e outros escritos, infelizmente sem tradução para o português. 


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

DOYLE, U. Cartas de amor de mulheres notáveis. Trad. Doralice Lima. 1 ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2011. 


A EXPERIÊNCIA DO CINEMA - O FILME CONTRA O LIVRO - ISMAIL XAVIER

 


É porque permanece sempre concreta, de maneira precisa e rica, que a imagem cinematográfica se presta pouco à esquematização que permitiria uma classificação rigorosa, necessária a uma arquitetura lógica e um pouco complicada. Na verdade, a imagem é um símbolo, mas um símbolo muito próximo da realidade sensível que ele representa. Enquanto isso, a palavra constitui um símbolo indireto elaborado pela razão e, por isso, muito afastado do objeto. Assim, para emocionar o leitor, a palavra deve passar novamente pelo circuito dessa razão que a produziu, a qual deve decifrar e arrumar logicamente este signo, antes que ele desencadeie a representação da realidade afastada à qual corresponde, ou seja, antes que esta evocação esteja por sua vez apta a mexer com os sentimentos.  A imagem animada, ao contrário, forma ela própria uma representação já semipronta que se dirige à emotividade do espectador quase sem precisar da mediação de raciocínio. 

A frase fica como um criptograma incapaz de suscitar um estado sentimental enquanto sua fórmula não for traduzida em dados claros e sensíveis através de operações intelectuais, que interpretam e reúnem, numa ordem lógica, termos abstratos para deles deduzir uma síntese mais concreta. Por outro lado, a simplicidade extrema com que se organiza uma sequência cinematográfica, onde todos os elementos são, acima de tudo, figuras particulares, requer apenas um esforço mínimo de decodificação e ajuste, para que os signos da tela adquiram um efeito pleno de emoção. Na literatura, mesmo os escritores que, de Rimbaud aos surrealistas, pareceram ou pretenderam libertar-se do constrangimento do raciocínio lógico, conseguiram apenas complicar e dissimular de tal modo a estrutura lógica da expressão, que é preciso operar toda uma matemática gramatical, uma álgebra sintática para resolver os problemas de uma poesia que para ser compreendida e sentida, exige não apenas uma sensibilidade sutil, mas também uma habilidade técnica semelhante à de um virtuose em palavras cruzadas. 

Nos antípodas de tais ambiguidades, o filme por sua capacidade de abstrair em razão da pobreza de sua construção lógica, da sua impotência em formular deduções, está dispensado de recorrer a laboriosas digestões intelectuais. Assim, o livro e o filme se opõem. O texto só fala aos sentimentos através do filtro da razão. As imagens da tela limitam-se a fluir sobre o espírito da geometria para, em seguida, atingir o espírito do refinamento. 

Assim sendo, a razão encontra-se em posição de exercer uma influência mais marcante, um controle mais eficaz sobre as sugestões provenientes da leitura do que sobre aquelas que emanam do espetáculo cinematográfico. Qualquer que seja o dinamismo sentimental com que se possa dotar um texto, uma parte dessa energia se dissipa no decorrer de operações lógicas a que os signos devem submeter-se antes de se transformarem, para os leitores, em convicções. É que o uso da lógica de nada vale sem a crítica, tanto quanto seria impossível conceber uma dessas faculdades separadas da outra. Mesmo quando tende a disseminar o ilógico ou o irrazoável, o livro permanece como um caminho vigiado pela razão, um caminho a partir do qual a ideia precede e governa o sentimento; um caminho, para assim dizer, clássico.

Por outro lado, as representações fornecidas pelo filme, sendo submetidas apenas a uma triagem lógica e crítica bastante sumária, perdem muito pouco de sua força emocional e vêm tocar brutalmente a sensibilidade do espectador. Esse poder maior de contágio mental, os dispositivos legais reconhecem implicitamente no cinema, onde quer que se mantenha uma censura de filmes, enquanto que a imprensa --- em princípio, pelo menos --- foi liberada da tutela dos poderes públicos. A primeira apreensão lógica é tão fugaz que a verdadeira ideia, aquela que a imagem pode gerar, só se produz depois que o sentimento foi envolvido e sob a sua influência. Mesmo quando amplia convicções que, posteriormente, poderão ser confirmadas pelo raciocínio, o filme continua a ser, por si só, um caminho pouco racional, um caminho sobre o qual a propagação do sentimento ganha em velocidade sobre a formação da ideia. É um caminho romântico, acima de tudo.

A invenção do cinema marcará, na história da civilização uma data tão importante quanto a da descoberta da imprensa? Em todo caso, vê-se que a influência do filme e do livro é exercida em sentidos bastante diversos. 

A leitura desenvolve na alma as qualidades consideradas superiores, ou seja, adquiridas mais recentemente: o poder de abstrair, classificar, deduzir. O espetáculo cinematográfico atua primeiramente sobre as faculdades mais antigas, logo, sobre as fundamentais, que classificamos de primitivas: a emoção e a indução. O livro aparece como um agente da intelectualização enquanto que o filme tende a reavivar uma mentalidade mais instintiva. Tal fato parece justificar a opinião dos que acusam o cinema de ser uma escola de embrutecimento. 

Mas os excessos do intelectualismo conduzem a uma outra forma racionalizante de estupidez da qual a escolástica, no seu apogeu, pode servir de exemplo, e onde a abundância de abstrações e de raciocínios sufoca a própria razão, afastando-a da realidade ao ponto de não mais permitir o aparecimento de uma proposição útil; em última instância, de nenhuma outra verdade. Se o livro encontrou o seu antídoto no cinema, pode-se concluir então que tal remédio era necessário. 

Reconheçamos que o cinematógrafo é, de fato, uma escola de irracionalismo, de romantismo e que, por isso, ele manifesta novamente características demoníacas, que aliás procedem diretamente do demonismo primordial da fotogenia do movimento. Na vida da alma, a razão, por meio de regras fixas, procura impor certa medida, uma relativa estabilidade aos fluxos e defluxos contínuos que agitam o domínio afetivo, às fortes mares e furiosas tempestades que transtornam sem parar o mundo dos instintos. Se não é o caso de pretendê-la imutável, a razão no entanto constitui nitidamente o fator mental de menor mobilidade. Assim, a lei da fotogenia já deixava antever que toda interpretação racional do mundo prestar-se-ia menos à representação cinematográfica do que a uma concepção intuitiva, sentimental.

Rival da leitura, o espetáculo cinematográfico é seguramente capaz de suplantá-la em influência. Ele se dirige a uma plateia que pode ser mais numerosa e diversificada do que um público de leitores, pois não exclui nem os semiletrados nem os analfabetos: não se limita aos usuários de certos idiomas e dialetos; compreende até mesmo os mudos e os surdos; dispensa tradutores e não precisa temer seus contra-sensos; e, finalmente, porque esta plateia sente-se respeitada na fraqueza ou na preguiça intelectual de sua imensa maioria. E como o ensinamento do filme vai direto ao coração, não dando tempo nem oportunidade à crítica de censurá-lo previamente, esta aquisição transforma-se imediatamente em paixão, em potencial que exige apenas a elaboração, a descarga em atos semelhantes aos do espetáculo do qual foi tirado. Assim sendo, o cinema parece poder transformar-se --- se já não o fez --- no instrumento de uma propaganda mais eficaz que a da coisa impressa.  (p. 293-295)

EXCERTO DE: 

XAVIER, I. A experiência do cinema: antologia. Org. Ismail Xavier. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983. 

DA SÉRIE DICAS DE LEITURA - UMA BIOGRAFIA – AGATHA CHRISTIE (de Janet Morgan)


Para quem gosta de ler e saber da vida dos outros: Agatha Christie era uma escritora extremamente prolífica. Escreveu cerca de 78 romances policiais, alguns tantos dedicados ao famoso e um tanto quanto exótico detetive belga, Hercule Poirot, outros à esperta velhinha metida a detetive, Miss Marple, além do casal de detetives Tommy e Tuppence Beresford, entre outros personagens também contemplados com o faro detetivesco. Sem contar as adaptações teatrais de alguns de seus livros, ensaios, contos e ainda a sua própria Autobiografia.
Tudo isso em 80 anos de vida! E na máquina de escrever!
A obra narra toda a sua trajetória desde o primeiro texto escrito aos 18 anos até o último romance, Portal do destino, publicado em 1973, dois anos antes de sua morte. Recheada de curiosidades, essa biografia aborda as estranhas peculiaridades da escritora: fazer anotações cifradas sobre personagens e assuntos para seus livros em caderninhos fofos; ser avessa a entrevistas; odiar aparelhos de televisão; raramente deixar-se ser fotografada, preferir ela mesma fazer as adaptações teatrais de suas obras, além de não ceder direitos autorais para filmes, pois dizia que ficavam péssimos e, colecionar casas.
Mas, apesar de todas essas e mais algumas “excentricidades”, Agatha Christie foi a escritora mais bem sucedida na venda de livros da Literatura Universal. Vale a pena conhecer sua conturbada vida através de dois casamentos e a obra baseada em suas muitas viagens pelo mundo.

MINHA HISTÓRIA COM MEUS LIVROS - CAPÍTULO 3 - TEORIA LITERÁRIA


 


Entre tantos outros, nesta prateleira guardo livros muito especiais para mim, os quais fui adquirindo ou ganhando de presente antes, durante e depois da minhas graduação e pós-graduação. 

O livro de Umberto Eco, por exemplo, Seis passeios pelos bosques da ficção, foi citado pela minha saudosa e muito phoda, Profª. Rosana durante minhas primeiras aulas de Literatura Brasileira na faculdade. Curiosa que sou, fui correndo comprá-lo, assim como a maioria dos livros que eram citados pelas professoras durante as aulas, pois elas diziam que todas as fontes precisavam ser consultadas e que precisávamos buscar sempre mais e mais referências... É um livro maravilhoso, pois elucida muita coisa sobre a arte de ler ficção.

Já o livro do meio, Roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa (de Heloísa Vilhena de Araújo), foi-me presenteado por um colega muito especial de faculdade (excelente companhia para se falar de Literatura nos bares da cidade e que até hoje não terminou o curso!), quando ele soube do tema do meu TCC, o qual versaria também sobre Grande sertão: veredas ao final de minha pós-graduação lá em 2005.  Muito gentil da parte dele. 

O livro da direita, Roteiro de cinema e televisão (de Flavio de Campos), também foi-me presenteado, só que por um ex-colega de trabalho quando trabalhei como revisora de textos em uma editora lá em 2005 também. Naquela época comecei a me interessar também pelos mistérios por trás da confecção de um roteiro de filme. 

Por fim, o livro mais grosso de capa azul, chama-se O mundo maravilhoso do soneto (de Vasco de Castro Lima), que eu conheci na biblioteca da casa do meu marido (que não era ainda marido) quando fui encontrá-lo no Rio de Janeiro, depois de trocarmos milhões de mensagens, poemas e letras de música nos falecidos Orkut e MSN lá em 2011/2012, anos depois do término da faculdade. E, assim, quando ele me mostrou o livro, fiquei doidinha por ele, pois escrevo e adoro sonetos, porém o livro era da irmã dele... Resultado: acabei ganhando o livro de presente. 

Adorei os presentes, pois livros são presentes sempre bem-vindos, ainda mais para quem estava (e está ainda, até o fim da vida) montando uma biblioteca como eu... 


 
 

A VÊNUS DAS PELES E O SURGIMENTO DO SADOMASOQUISMO





"Açoita-me, pois se isso te satisfaz. Açoita-me, eu imploro, causa-me este prazer". (A Vênus das peles)

Leopold Von Sacher-Masoch foi um escritor nascido na Polônia em 1836, mas que se considerava alemão. Alimentando o sonho de se tornar um escritor famoso e reconhecido, projetou a publicação de um conjunto de livros chamado O legado de Caim, retratando aspectos da condição humana, tema este que viria a ser a essência de sua produção literária.

Fazendo parte do primeiro volume, A Vênus das peles, é uma novela escrita em 1870, obra que imortalizou Sacher-Masoch por abordar o tema do prazer  sexual obtido através do sofrimento, mais conhecido pelo termo (sado) masoquismo,  tirado do nome do próprio autor pelo psiquiatra austríaco Richard von Krafft-Ebing, que em 1886 publicava um tratado psicológico arrolando as principais práticas sexuais que fogem da normalidade.

Outro autor que teve seu nome usado para batizar perversões sexuais foi o Marquês de Sade, com o termo sadismo para se referir à prática sexual em que um parceiro sente prazer ao provocar dor no outro. 

Inspirado na própria vida do autor, a narrativa trata do peculiar relacionamento amoroso calcado na dominação e submissão entre Severin e Wanda von Dunajew, no qual as partes celebram um contrato em que ele será totalmente submisso a ela, sendo, portanto, seu escravo sexual, dando-lhe poderes para controlá-lo e aplicar-lhe sofrimentos e castigos da maneira que bem entender, mas em troca, Wanda deveria por vezes vestir somente uma pele de animal sobre o corpo e fingir ser a deusa Vênus do amor. 

De início, Wanda sente-se um pouco constrangida, mas com o passar do tempo acaba gostando da posição de dominadora na relação e, assim, cumpre com requintado prazer os perversos desejos de Severin:

[...] A senhora sabe que sou um "ultra-sensual", que em mim tudo remete ao imaginário, e é no sonho alimentado. Cedo amadureci e fui altamente estimulado, ao ter em mãos, aos dez anos de idade, as lendas dos mártires. Recordo-me de ter lido horrorizado, ainda que com verdadeiro prazer, como feneciam nas prisões, ou eram colocados em espetos, transpassados de flechas, fervidos em pez, lançados às feras, ou então como padeciam na cruz, e de como a tudo isso padeciam com uma espécie de alegria. Sofrer, suportar cruéis tormentos apareceram-me como prazer, tanto mais se infligidos por uma bela mulher, que para mim desde sempre concentrou toda a poesia, como tudo o que há de demoníaco. A ela rendi formal e cerimonioso culto. (MASOCH, p. 62, 2008)

E por tomar tanto gosto pela coisa, Wanda terminará por proporcionar ainda mais prazeres inimagináveis e inesperados para Severin, o que lhe deixará surpreso e assustado, fazendo com que a história tome um rumo diferente do que ele imaginou. 

BIBLIOGRAFIA:

MASOCH, S. A Vênus das peles. Trad. Saulo Krieger. 1 ed. São Paulo: Hedra, 2008.


OS MELHORES PREFÁCIOS DA LITERATURA UNIVERSAL - CAMINHANDO NA CHUVA, DE CHARLES KIEFER



COMENTÁRIO PRELIMINAR

Essa mania de escrever tenho há muito tempo, penso que a herdei de meu avô, que não escrevia mas sabia contar histórias como ninguém. Acho que foi ele que meteu isso no meu sangue. Aquelas aventuras todas que ele contava ficaram incrustradas em mim, e agora, depois de vários anos, elas vêm à tona, emergem do passado e, às vezes, nem me deixam dormir! 

Mas não é um livro de aventuras que vou escrever, nem são histórias fantásticas. Tenho a imaginação pobre e não gosto de romances de aventuras, exceto o Dom Quixote de La Mancha. É a minha própria vida que pretendo contar. Recuperar a infância que se foi e a adolescência que nem vi passar. Prometo não ser chato quanto o Proust, que também não tenho saco pra livro muito volumoso. Serei breve, tirarei o sumo das minhas memórias, o bagaço jogo fora, por ser bagaço, e para que sirva, talvez, de adubo.

Há várias formas de contar. Confesso que iniciei em terceira pessoa, tentando me esconder atrás de um narrador onisciente. Daí pensei: pô, todo mundo vai saber que é autobiográfico, todo mundo me conhece... Parti, então, pra primeira pessoa, e acredito que acertei. A história fica mais envolvente, acho que é isso. E mais fácil, principalmente pra mim. Gosto muito do Graciliano Ramos, daquelas frases secas, precisas, sem florilégios. E na primeira pessoa. Claro, não poderei escrever como ele porque tenho o meu estilo e não nasci em Quebrângulo. 

Falar nisso: já está na hora de dizer meu nome, filiação, local de nascimento e essas coisas todas que o autor põe no livro mais pra ficha de leitura do que por outro motivo qualquer. Bem, me chamo Túlio Schuster, nasci no município de Pau-d'Arco, meu pai se chama Carlos e a minha mãe Virgínia. Não tenho irmãos, acho que é por isso que sou meio mimado e me ofendo fácil. Sei que é um defeito desgraçado, mas já fiz de tudo, menos análise porque não acredito nisso, e nem posso, é coisa de ricaço, só pra justificar o dolce-far-niente, como diria um tio meu, casado com minha tia Fredolina, um italiano danado de bebedor de vinho, um vermelho sem-vergonha, contador de piada suja e mentira da grossa. 

Mas, como ia dizendo: me ofendo fácil. Muita vez já briguei por um niques qualquer. Coisinha à-toa, um osso pra irmã (eu que nem tenho irmã não devia me ofender) ou pra mãe. Essas coisas que os gaiatos dizem por deboche, pra atazanar a vida da gente. Ah, mas de uma coisa me orgulho: nunca não levei desaforo pra casa. Mas já levei nariz sangrando, costelas machucadas, hematomas no rosto...

Estava esquecendo um detalhe importante: a descrição física. Sou alto, um metro e oitenta. Tenho o olho azul, o nariz batatudo (acho que meu avô andou de transa com uma índia caingang. Meu pai também tem o nariz batatudo e cara de índio. Como é que alemão pode ter cara de índio?), o cabelo é castanho-escuro. O que mais? os meus lábios? Ah, são carnudos. E o queixo? É forte. Puxa vida! mas o que é que significa "queixo forte"? Isso aí é influência de algum romance que li. Não sei se interessa, mas eis uma coisa que fiz bastante: ler romances. Bom, mas agora já estou entrando na descrição psicológica, não estou? Os livros que alguém leu ajudaram a compor a sua personalidade, não ajudaram? Acho que o homem é um amontoado de leituras, de músicas, de pinturas e de gens. Penso que o meio influencia na formação da personalidade, não influencia? Droga! mas isso é um comentário que devia fazer mais adiante, recém estou começando o livro...

KIEFER, C. Caminhando na chuva. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. 

PARA QUE POESIA?

 



[...] que poesia? Aquela que está, ou não está, tanto quanto em outros lugares, no poema? Ou o próprio poema? Ou um grupo de poemas? Ou o conjunto de todos os poemas? Ou a arte, o artesanato, a ciência, a técnica, o labor, a profissão, o rito, a feitiçaria, o sacerdócio, a religião, a missão, a mistificação, o dom, a benção, a maldição, a tragédia, a comédia, o fingimento, o amor, a raiva, o nojo, a obrigação, a devoção, a glória, a vergonha, o capricho, a mania, o passatempo, o jogo, o brinquedo, o ócio, a arma, o perigo, a conspiração, a blasfêmia, o roubo, a doação... [...]

Trata-se aqui, sobretudo, daquele aprofundamento provocado por toda obra de arte no ser que a considera, que a revive. A poesia trágica, sobretudo, mas também qualquer outra forma de poesia absoluta --- e, quanto mais intenso o poema, mais forte será, neste sentido, seu impacto sobre o ser que o recebe --- provocam na alma sobre a qual age uma espécie de catarse, uma purgação, uma purificação. Aquele que verdadeiramente vive um poema, imediatamente, por mais que disso não se dê conta, muda de vida. 

[...] Toda grande poesia, em particular aquela do tipo "comovente" relembra ao homem sua grandeza, seu alto destino. Recorda, igualmente, a quem vive, a seriedade, a importância da vida. [...]

Poetas há que monologam, há os que parecem dirigir-se a um só leitor, a "amada", o "amigo"..., há os que falam a um grupo de eleitos, e há os que discursam, os que pregam às multidões dos espaços e dos tempos. Qualquer que seja o caso, todavia, o poeta fala também a si próprio, organizando-se através de sua poesia. 

[...] Na poesia encontra o poeta, quando os deuses estão do seu lado, sua unidade existencial. Ela reúne harmoniosamente --- pelo menos é esse um de seus objetivos --- os aspectos antagônicos da personalidade do poeta, gerando finalmente a paz em seu microcosmos anteriormente revolto, às vezes, até caótico. Através de sua arte o poeta se concentra, se afirma, se liberta --- da mesma maneira que os demais homens, cada um em seu ofício, ou em sua devoção. Todo poeta digno de ser como tal considerado pelo povo (que nele vê, por bem, ou por mal, um dos seus guias ou porta-vozes) considera sua vida como um processo ininterrupto de aperfeiçoamento. Nesse processo entra a poesia como instrumento principal. E é por isso que a vida de um poeta perde completamente seu sentido quando, porventura, se vê ele definitivamente impedido de fazer poesia.

[...] A partir de certo ponto --- para alguns desde o primeiro contato --- a poesia se identifica de tal modo com o poeta que este não pode mais dispensar aquela. Sem ela o mundo lhe seria tão escuro e confuso que o destruiria. O poeta é, antes de mais nada, um homem que sente na própria carne e até aos ossos a necessidade de experimentar (e não apenas de observar) o universo, modificando este, obrigando-o a reagir às palavras com que o poeta o ataca, celebra ou lamenta. A poesia provoca, deflagra, registra, sublima e decide a luta entre o poeta e o universo, luta que pode acabar ou pela derrota do artista --- sempre de certo modo uma vitória --- ou por um sereno pacto final entre os dois cosmos exterior e interior, reconciliados. No combate bem combatido entre Homo e Mundus, a poesia conduz o poeta ao seu nirvana especial. 

EXCERTO de:

FAUSTINO, M. Poesia-Experiência. 1 ed. São Paulo: Perspectiva: 1977. 

JUDY GARLAND - MUITO, MAS MUITO ALÉM DO ARCO-ÍRIS (FILME)





Falar sobre a vida de Judy Garland não é fácil. Judy Garland por si só já era um filme.

Todos sabemos que Judy Garland foi um dos ícones máximos de Hollywood. Em 1935, aos 13 anos assinou seu primeiro contrato com os estúdios MGM, onde viria a estrelar o inesquecível e emblemático O mágico de Oz (como a garotinha Dorothy Gale)lançado quatro anos depois. Dona de um talento precoce e excepcional para a idade, Judy Garland, tinha tudo para ser bem-sucedida na carreira e na vida pessoal, pois era considerada uma "máquina de fazer dinheiro". Entretanto, não foi bem assim. 

Apesar de seu visível talento, Judy não possuía a mesma beleza e personalidade de outras atrizes-protagonistas da época, como Ava Gardner, Lana Turner ou Elizabeth Taylor. Consciente disso, a pequena Judy desenvolveu uma grande preocupação com sua aparência, agravada ainda mais pelos constantes abusos psicológicos que sofria do chefe do estúdio Louis B. Mayer, chamando-a de "pequena corcunda", entre outras coisas.

Antes do lançamento de O mágico de Oz em 1939, a jovem atriz entrou num ritmo frenético de trabalho, fazendo parte do elenco ou estrelando outros oito (!) filmes. E, assim, para conseguir desempenhar bem seus papéis e aguentar as horas seguidas de gravação, ela e outros atores jovens do elenco eram obrigados a consumir anfetaminas, barbitúricos e outras drogas pelos produtores e diretores do estúdio. 

Mas para Judy, a situação era ainda pior, pois além de ser manipulada por diretores e produtores, era também controlada por sua mãe, que fazia o papel de sua agente, decidindo o que ela podia vestir, onde podia ir, o que podia comer (dando-lhe pílulas para inibir o apetite), quando podia dormir, entre outras regras doentias. Durante as gravações de O mágico de Oz, Judy chegou mesmo a ser agredida fisicamente com um tapa no rosto pelo diretor do filme, após uma crise de riso fora de hora, o que a levou a desenvolver uma profunda depressão. Além disso, apesar dos 16 anos já da pequena atriz, ela era obrigada a se passar por uma garotinha mais nova no filme, usando vestidos apertados na cintura e faixas para esconder os seios, o que a incomodava bastante. 

A partir de 1940 ela começou a ganhar papéis adultos, como no filme Little Nettie Kelly, no qual interpretou mãe e filha, alcançando status de estrela da MGM, porém sofrendo com mais abusos e assédio sexual de diretores, produtores e colegas de profissão. Disposta a livrar-se desse meio em que era constantemente criticada pela aparência e sofrendo diversos tipos de abuso, Judy quis desistir da carreira, entretanto, viu seus planos fracassarem por imposição da mãe, que a obrigou a continuar. Assim, vivendo sob esse contínuo stress, acabou desenvolvendo crises de pânico e ansiedade, o que a levou ao vício em álcool e cigarros, além dos barbitúricos.

Nessa época ainda, Judy começou seus primeiros relacionamentos amorosos, num total de cinco casamentos desfeitos, sendo frequentemente traída por seus maridos, além de sofrer agressões físicas, levando-a a praticar abortos para não prejudicar a carreira, tentativas de suicídio e o desenvolvimento de uma anorexia alcóolica, devido a pressões do estúdio para que não engordasse. Em 1947, a eterna Dorothy sofre um colapso nervoso durante as filmagens de The pirata, sendo internada num hospital psiquiátrico, tornando-se viciada em antidepressivos e ansiolíticos.

Após esse episódio, ela completou mais três filmes para a MGM, mas poucos meses depois seus problemas psicológicos e emocionais agravaram-se, forçando-a a consultar psiquiatras e a frequentar sessões de psicoterapia, o que fez com que deixasse de completar uma série de filmes. Acabava aí a relação turbulenta da atriz com os estúdios MGM, selada em 17 de junho de 1950.

Depois desse período, Judy viveu anos de voltas e reviravoltas em sua carreira e na vida pessoal. E, mesmo tendo sido diagnosticada com cirrose hepática e recebido uma expectativa de vida de mais cinco anos (em 1959), ela não deixou de trabalhar, aceitando uma proposta para cinco semanas de apresentação em Londres, na boate Talk of the Tow em fevereiro de 1969, provando que a doença não a derrotara. 

Na viagem conheceu o último marido, com quem casou-se em 17 de março do mesmo ano, tendo feito um último concerto em Copenhage, três dias depois. Mudando-se definitivamente para Londres, Judy foi encontrada morta pelo marido no banheiro de sua casa aos 47 anos no dia 22 de junho. Era o fim de uma vida, mas não o fim de um ícone. Era o fim do arco-íris, um arco-íris que para ela nunca fora colorido. Pelo contrário. Era sempre em preto e branco. 

A cinebiografia Judy Garland - muito além do arco-íris lançada em 2019 baseia-se no último ano de vida da atriz, intercalando o momento presente, no qual ela luta pela guarda dos filhos mais novos e está em Londres para as apresentações com flasbacks do passado, em que rememora os anos de abuso psicológico que sofria nos estúdios da MGM. E a mostra já bastante fragilizada devido aos excessos de álcool, cigarros e remédios para dormir, além da personalidade difícil e perturbada pelos anos de vício. 

O destaque fica por conta da atuação de Renée Zellweger (sim, a gordinha de O diário de Bridget Jones), que está irreconhecível como Judy Garland, tendo estudado com requintes de detalhes todos os trejeitos da atriz. Demorei uns 20 minutos para reconhecê-la no papel. 

Curiosidade: Lisa Minelli, a filha mais velha de Judy Garland não aprovou o filme biográfico sobre sua mãe. 

Fonte de pesquisa: Wikipédia



SOBRE A ARTE DA PALAVRA


De todas as artes a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil é sem dúvida a arte da palavra. De todas as mais se entretece e se compõe. São as outras como ancilas e ministras; ela, soberana universal.

Da estatuária toma as formas, da arquitetura imita a regrada estrutura de suas fábricas, da pintura copia a cor e o debuxo de seus quadros; da música aprende a variada sucessão de seus compassos e melodias; e sobre todos estes predicados tem, mais do que as outras artes, a vida, que anima os seus painéis, a paixão, que dá novo esplendor às suas tintas, o movimento, que intima aos que a escutam e admiram o entusiasmo e a persuasão.

Só a palavra, nas artes a que é matéria-prima, fala ao mesmo tempo à fantasia e à razão, ao sentimento e às paixões. Só ela, Pigmalião prodigioso, esculpe estátuas que vão saindo vivas e animadas da pedra ou do madeiro, onde as delineia e arredonda o seu buril. Só a palavra, mais inventiva do que Zêuxis, sabe desenhar e colorir figuras e países, com que se ilude e engana a vista intelectual. Só a palavra, mais audaz que os Ictinos e os Calícrates, traça, dispõe, exorna e arremessa aos ares monumentos mais nobres e ideais que o Partenon de Atenas. Só a palavra, mais comovedora e persuasiva do que o pletro de Orfeu, encadeia à sua lira mágica estas feras humanas ou desumanas, que se chamam homens, arrebatados e enfurecidos nas mais truculentas alucinações.

José Maria Latino Coelho - escritor português 

MINHA HISTÓRIA COM MEUS LIVROS - CAPÍTULO 2 - PRIMEIROS LIVROS DA FACUL


 



Édipo-Rei, do grego Sófocles, cuja história do filho que desposa a mãe e que virou novela na Globo em 1989 é bastante conhecida e esse pequeno Dicionário de Latim foram os primeiros livros que comprei assim que adentrei as portas da faculdade de Letras lá em 2002. Lembro-me de que foi uma sensação maravilhosa tê-los comprado, pois além de estar abastecendo minha biblioteca com livros comprados por mim, eles representavam uma nova etapa da minha vida depois de um primeiro amor malsucedido, tenebroso e fracassado. Mas essa é uma outra história... 
 
Lembro também de tê-los comprado numa livraria física bem tradicional, que não mais existe em Curitiba. Aliás, um bom tanto de livrarias  vêm fechando suas portas de uns tempos pra cá, o que é uma pena, pois não tem nada melhor na vida do que sentir aquele cheirinho de livros novos ou até mesmo aquele cheirinho de mofo e poeira dos livros usados. O fato é que qualquer que seja o cheiro do livro, ele é um bálsamo para as nossas narinas treinadas de leitores experimentados ou nem tanto.

Mas essa coisa de leitores experimentados também já é um outro assunto, que remete ao grande Umberto Eco... o primeiro teórico que tive o prazer de estudar na faculdade. 

OS MELHORES PREFÁCIOS DA LITERATURA UNIVERSAL - DEMIAN, DE HERMAN HESSE

 

Para relatar a história da minha vida, devo recuar alguns anos. Se me fosse possível, deveria retroceder ainda mais, à primeira infância, ou mais ainda, aos primórdios de minha ascendência.

Os poetas, quando escrevem novelas, costumam proceder como se fossem Deus e pudessem abranger com o olhar toda a história de uma vida humana, compreendendo-a e expondo-a como se o próprio Deus a relatasse, sem nenhum véu, revelando a cada instante sua essência mais íntima. Não posso agir assim, e os próprios poetas não o conseguem. Minha história é no entanto, para mim, mais importante do que a de qualquer outro autor, pois é a minha própria história, e a história de um homem --- não a de um personagem inventado, possível ou inexistente em qualquer outra forma, mas a de um homem real, único e vivo. 

Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. 

Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é crucificado um Redentor.

Poucos são hoje os que sabem o que seja um homem. Muitos o sentem e, por senti-lo, morrem mais aliviados, como eu próprio, se conseguir terminar este relato. 

Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos. 

A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães; todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um --- resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial --- tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se. 


HESSE, H. Demian. Trad. Ivo Barroso. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Trad. Ivo Barroso.