PARA QUE POESIA?

 



[...] que poesia? Aquela que está, ou não está, tanto quanto em outros lugares, no poema? Ou o próprio poema? Ou um grupo de poemas? Ou o conjunto de todos os poemas? Ou a arte, o artesanato, a ciência, a técnica, o labor, a profissão, o rito, a feitiçaria, o sacerdócio, a religião, a missão, a mistificação, o dom, a benção, a maldição, a tragédia, a comédia, o fingimento, o amor, a raiva, o nojo, a obrigação, a devoção, a glória, a vergonha, o capricho, a mania, o passatempo, o jogo, o brinquedo, o ócio, a arma, o perigo, a conspiração, a blasfêmia, o roubo, a doação... [...]

Trata-se aqui, sobretudo, daquele aprofundamento provocado por toda obra de arte no ser que a considera, que a revive. A poesia trágica, sobretudo, mas também qualquer outra forma de poesia absoluta --- e, quanto mais intenso o poema, mais forte será, neste sentido, seu impacto sobre o ser que o recebe --- provocam na alma sobre a qual age uma espécie de catarse, uma purgação, uma purificação. Aquele que verdadeiramente vive um poema, imediatamente, por mais que disso não se dê conta, muda de vida. 

[...] Toda grande poesia, em particular aquela do tipo "comovente" relembra ao homem sua grandeza, seu alto destino. Recorda, igualmente, a quem vive, a seriedade, a importância da vida. [...]

Poetas há que monologam, há os que parecem dirigir-se a um só leitor, a "amada", o "amigo"..., há os que falam a um grupo de eleitos, e há os que discursam, os que pregam às multidões dos espaços e dos tempos. Qualquer que seja o caso, todavia, o poeta fala também a si próprio, organizando-se através de sua poesia. 

[...] Na poesia encontra o poeta, quando os deuses estão do seu lado, sua unidade existencial. Ela reúne harmoniosamente --- pelo menos é esse um de seus objetivos --- os aspectos antagônicos da personalidade do poeta, gerando finalmente a paz em seu microcosmos anteriormente revolto, às vezes, até caótico. Através de sua arte o poeta se concentra, se afirma, se liberta --- da mesma maneira que os demais homens, cada um em seu ofício, ou em sua devoção. Todo poeta digno de ser como tal considerado pelo povo (que nele vê, por bem, ou por mal, um dos seus guias ou porta-vozes) considera sua vida como um processo ininterrupto de aperfeiçoamento. Nesse processo entra a poesia como instrumento principal. E é por isso que a vida de um poeta perde completamente seu sentido quando, porventura, se vê ele definitivamente impedido de fazer poesia.

[...] A partir de certo ponto --- para alguns desde o primeiro contato --- a poesia se identifica de tal modo com o poeta que este não pode mais dispensar aquela. Sem ela o mundo lhe seria tão escuro e confuso que o destruiria. O poeta é, antes de mais nada, um homem que sente na própria carne e até aos ossos a necessidade de experimentar (e não apenas de observar) o universo, modificando este, obrigando-o a reagir às palavras com que o poeta o ataca, celebra ou lamenta. A poesia provoca, deflagra, registra, sublima e decide a luta entre o poeta e o universo, luta que pode acabar ou pela derrota do artista --- sempre de certo modo uma vitória --- ou por um sereno pacto final entre os dois cosmos exterior e interior, reconciliados. No combate bem combatido entre Homo e Mundus, a poesia conduz o poeta ao seu nirvana especial. 

EXCERTO de:

FAUSTINO, M. Poesia-Experiência. 1 ed. São Paulo: Perspectiva: 1977. 

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