É porque permanece sempre concreta, de maneira precisa e rica, que a imagem cinematográfica se presta pouco à esquematização que permitiria uma classificação rigorosa, necessária a uma arquitetura lógica e um pouco complicada. Na verdade, a imagem é um símbolo, mas um símbolo muito próximo da realidade sensível que ele representa. Enquanto isso, a palavra constitui um símbolo indireto elaborado pela razão e, por isso, muito afastado do objeto. Assim, para emocionar o leitor, a palavra deve passar novamente pelo circuito dessa razão que a produziu, a qual deve decifrar e arrumar logicamente este signo, antes que ele desencadeie a representação da realidade afastada à qual corresponde, ou seja, antes que esta evocação esteja por sua vez apta a mexer com os sentimentos. A imagem animada, ao contrário, forma ela própria uma representação já semipronta que se dirige à emotividade do espectador quase sem precisar da mediação de raciocínio.
A frase fica como um criptograma incapaz de suscitar um estado sentimental enquanto sua fórmula não for traduzida em dados claros e sensíveis através de operações intelectuais, que interpretam e reúnem, numa ordem lógica, termos abstratos para deles deduzir uma síntese mais concreta. Por outro lado, a simplicidade extrema com que se organiza uma sequência cinematográfica, onde todos os elementos são, acima de tudo, figuras particulares, requer apenas um esforço mínimo de decodificação e ajuste, para que os signos da tela adquiram um efeito pleno de emoção. Na literatura, mesmo os escritores que, de Rimbaud aos surrealistas, pareceram ou pretenderam libertar-se do constrangimento do raciocínio lógico, conseguiram apenas complicar e dissimular de tal modo a estrutura lógica da expressão, que é preciso operar toda uma matemática gramatical, uma álgebra sintática para resolver os problemas de uma poesia que para ser compreendida e sentida, exige não apenas uma sensibilidade sutil, mas também uma habilidade técnica semelhante à de um virtuose em palavras cruzadas.
Nos antípodas de tais ambiguidades, o filme por sua capacidade de abstrair em razão da pobreza de sua construção lógica, da sua impotência em formular deduções, está dispensado de recorrer a laboriosas digestões intelectuais. Assim, o livro e o filme se opõem. O texto só fala aos sentimentos através do filtro da razão. As imagens da tela limitam-se a fluir sobre o espírito da geometria para, em seguida, atingir o espírito do refinamento.
Assim sendo, a razão encontra-se em posição de exercer uma influência mais marcante, um controle mais eficaz sobre as sugestões provenientes da leitura do que sobre aquelas que emanam do espetáculo cinematográfico. Qualquer que seja o dinamismo sentimental com que se possa dotar um texto, uma parte dessa energia se dissipa no decorrer de operações lógicas a que os signos devem submeter-se antes de se transformarem, para os leitores, em convicções. É que o uso da lógica de nada vale sem a crítica, tanto quanto seria impossível conceber uma dessas faculdades separadas da outra. Mesmo quando tende a disseminar o ilógico ou o irrazoável, o livro permanece como um caminho vigiado pela razão, um caminho a partir do qual a ideia precede e governa o sentimento; um caminho, para assim dizer, clássico.
Por outro lado, as representações fornecidas pelo filme, sendo submetidas apenas a uma triagem lógica e crítica bastante sumária, perdem muito pouco de sua força emocional e vêm tocar brutalmente a sensibilidade do espectador. Esse poder maior de contágio mental, os dispositivos legais reconhecem implicitamente no cinema, onde quer que se mantenha uma censura de filmes, enquanto que a imprensa --- em princípio, pelo menos --- foi liberada da tutela dos poderes públicos. A primeira apreensão lógica é tão fugaz que a verdadeira ideia, aquela que a imagem pode gerar, só se produz depois que o sentimento foi envolvido e sob a sua influência. Mesmo quando amplia convicções que, posteriormente, poderão ser confirmadas pelo raciocínio, o filme continua a ser, por si só, um caminho pouco racional, um caminho sobre o qual a propagação do sentimento ganha em velocidade sobre a formação da ideia. É um caminho romântico, acima de tudo.
A invenção do cinema marcará, na história da civilização uma data tão importante quanto a da descoberta da imprensa? Em todo caso, vê-se que a influência do filme e do livro é exercida em sentidos bastante diversos.
A leitura desenvolve na alma as qualidades consideradas superiores, ou seja, adquiridas mais recentemente: o poder de abstrair, classificar, deduzir. O espetáculo cinematográfico atua primeiramente sobre as faculdades mais antigas, logo, sobre as fundamentais, que classificamos de primitivas: a emoção e a indução. O livro aparece como um agente da intelectualização enquanto que o filme tende a reavivar uma mentalidade mais instintiva. Tal fato parece justificar a opinião dos que acusam o cinema de ser uma escola de embrutecimento.
Mas os excessos do intelectualismo conduzem a uma outra forma racionalizante de estupidez da qual a escolástica, no seu apogeu, pode servir de exemplo, e onde a abundância de abstrações e de raciocínios sufoca a própria razão, afastando-a da realidade ao ponto de não mais permitir o aparecimento de uma proposição útil; em última instância, de nenhuma outra verdade. Se o livro encontrou o seu antídoto no cinema, pode-se concluir então que tal remédio era necessário.
Reconheçamos que o cinematógrafo é, de fato, uma escola de irracionalismo, de romantismo e que, por isso, ele manifesta novamente características demoníacas, que aliás procedem diretamente do demonismo primordial da fotogenia do movimento. Na vida da alma, a razão, por meio de regras fixas, procura impor certa medida, uma relativa estabilidade aos fluxos e defluxos contínuos que agitam o domínio afetivo, às fortes mares e furiosas tempestades que transtornam sem parar o mundo dos instintos. Se não é o caso de pretendê-la imutável, a razão no entanto constitui nitidamente o fator mental de menor mobilidade. Assim, a lei da fotogenia já deixava antever que toda interpretação racional do mundo prestar-se-ia menos à representação cinematográfica do que a uma concepção intuitiva, sentimental.
Rival da leitura, o espetáculo cinematográfico é seguramente capaz de suplantá-la em influência. Ele se dirige a uma plateia que pode ser mais numerosa e diversificada do que um público de leitores, pois não exclui nem os semiletrados nem os analfabetos: não se limita aos usuários de certos idiomas e dialetos; compreende até mesmo os mudos e os surdos; dispensa tradutores e não precisa temer seus contra-sensos; e, finalmente, porque esta plateia sente-se respeitada na fraqueza ou na preguiça intelectual de sua imensa maioria. E como o ensinamento do filme vai direto ao coração, não dando tempo nem oportunidade à crítica de censurá-lo previamente, esta aquisição transforma-se imediatamente em paixão, em potencial que exige apenas a elaboração, a descarga em atos semelhantes aos do espetáculo do qual foi tirado. Assim sendo, o cinema parece poder transformar-se --- se já não o fez --- no instrumento de uma propaganda mais eficaz que a da coisa impressa. (p. 293-295)
EXCERTO DE:
XAVIER, I. A experiência do cinema: antologia. Org. Ismail Xavier. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.
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