O NARRADOR DO ROMANCE - CAPÍTULO 2 - 4. AS NATUREZAS DO NARRADOR




As naturezas analítica, filosófica e ambígua conformam o narrador. Certamente não é a mesma natureza analítica do ensaio. No ensaio, a palavra, além de procurar a precisão, tem pretensões científicas. Na narração, contudo, a análise pode se confundir com entendimento. Quem se propõe a narrar é porque teve uma experiência anterior de compreensão de determinado fato. Ninguém narra sem saber. O narrador narra aquilo que conhece. E não narra sem despretensão. O narrador quer dizer algo sobre aquilo que narra. Ele conta porque atrás da história está uma moral. Um tema. Uma suposta verdade. Uma visão de mundo. Seja o que for, a narração não é um ato fortuito. O narrador é inteligente. O narrador está emitindo frases com conteúdos difusos. Além do mais o discurso do narrador é um discurso perigoso. Seu objetivo é que o leitor venha a ter o mesmo ponto de vista de quem narra. É uma versão. E, como toda versão, uma parcialização da realidade. Um entendimento da realidade. 

Dentro desse mesmo espírito, podemos dizer que o narrador não é um mero contador de histórias. O narrador expressa um conceito seja ele de que ordem for. O narrador é um ordenador que se expressa através da ficção. Ele procura dizer com a história. E mais ainda, ele exemplifica. O narrador, no fundo, é um narrador de uma fábula. Ao construir uma metáfora, o romance está permitindo ao narrador edificar uma parábola. O conto é herdeiro direto e natural das fábulas, mitos e lendas como gênero narrativo. Não só pela forma como também pela impressão causada no leitor. Mas neste aspecto o romance vai aproximar-se, senão do conto, das fontes primeiras da narração. Talvez, neste caso, fale mais alto, não o gênero, mas a qualidade intrínseca do narrador. Nenhuma narração é em vão. Sabe o leitor que está procurando algo mais que uma história, sabe o autor que, através do narrador, conta além do narrado. 

O narrador pertence ao condomínio da linguagem não efetiva, intercambial, valor de troca e de comunicação, mas da linguagem ritualística, religiosa, mítica, criadora. Essa experiência religiosa da linguagem transforma o narrador numa voz sacerdotal --- não tanto pelo que pode haver de verdade santificada, a palavra divina, mas pelo ritual de ler um texto sagrado. E neste sentido sagrado vem a ser a criação de um mundo que não é aquele de que se fala mas de outro que deveria ser. Na linguagem religiosa a palavra tem o papel profético e cada história não é a história em si. No romance a linguagem não procura anunciar novas verdades, nem condenar ninguém ao fogo eterno e muito menos pontificar entre o que é pecado e o que é santidade. 

Contudo, tanto no texto religioso quanto no texto ficcional as palavras estão a serviço de uma ideia que não é a ideia do ensaio --- ambos textos buscam uma explicação existencial e o fazem através de relatos e parábolas, metáforas e alegorias. O romance afasta-se do religioso quando não julga, não condena nem dicotomiza entre o bem e o mal. O romance afasta-se do religioso quando busca o prazer estético que não é preocupação do texto religioso. Mas se aproximam quando ambos "narradores" fabulam em nome de uma ética e de uma moral. A única diferença é que esta ética e esta moral do romance não são explícitas nem podem ser apresentadas de forma explícita, pois colocam em risco a qualidade narrativa. Em toda literatura está a ideia de negar um mundo injusto, desequilibrado e em desordem. Alguns autores --- os realistas de denúncia social --- são mais explícitos, enquanto outros negam com sutileza até mesmo metafísica --- os autores textualísticos para quem a experiência linguística é mais importante que os elementos de ação exterior. 

O texto religioso não comporta o termo narrador quando não existe uma fábula ou parábola. Ensinamentos, mandamentos, leis e normas, descrições ritualísticas e litúrgicas, rezas e procedimentos formais da igreja ou congregação não fazem parte do repertório narrativo do texto religioso. Nos causos, parábolas, histórias e relatos de cunho mítico, os textos religiosos trazem invisíveis ou presentes o narrador cuja função vai mais além de ordenar fatos e julgar ações. É ele quem tem o encargo de dar verossimilhança ao texto. No texto religioso é muito mais fácil para o narrador fazer-se acreditar porque ele não fala por si mas em nome de algo maior, um deus, um sistema de normas que é a sua religião que o respalda e produz uma credibilidade anterior ao que vai narrar. O papel do narrador literário é, neste sentido, duplamente difícil. Primeiro, porque ele tem que criar verossimilhança e depois, transmitir fruição a alguma ideia --- mesmo e principalmente que o autor assim não o deseje ou expresse claramente. Na criação de mundos imaginários, no valor da palavra, não como documento mas como fé, --- religiosa ou estética --- se acercam as duas experiências linguísticas. 

O discurso do narrador pode desejar o registro mas sempre será expressão da percepção. O narrador que nomeia não pode testemunhar além daquilo que viveu. O mais impessoal narrador em terceira pessoa pode dar cara de documento a seu texto, mas em algum momento, talvez por um deslocado adjetivo, o que pretendia ser História passa a ser história. O adjetivo por mais preciso e necessário, é uma visão pessoal. O narrador que adjetiva se trai. O realismo condenou o adjetivo exaltado do Romantismo porque percebia ali uma expressão do eu lírico. O Realismo apenas substituiu um adjetivo exacerbado por outro pretensamente científico. E a modernidade substituiu os dois por um adjetivo dito original. 

Ora, o adjetivo pode ser lugar-comum ou original, pode vir em forma gramaticalmente identificável como adjetivo (belo, feio, novo, velho, etc.) ou pode vir em forma de imagem ou perífrase, uma frase que tenha valor adjetivo. O certo é que a presença do adjetivo é onde se revela a existência do eu lírico no texto narrativo. É onde o narrador distante e impessoal que tanto quis se esconder atrás da linguagem documental se denuncia como discurso não científico. Não científico, deixemos claro, mas ideológico. "Sabe-se que a impassibilidade absoluta de um texto, como preconizavam os realistas, é impossível de ser instaurada", diz Céres Fernandes. 

A implicação do social em uma obra literária é sempre recorrente, nem que essa instância se situe por omissão. Parafraseando Paul Ricouer, não existe, na verdade, um lugar não-ideológico de onde se possa pensar o discurso literário. A aparentemente simples escolha do material a ser descrito já implica um intencionalidade. Mesmo a adoção da chamada "visão de câmera", considerada como o máximo da exclusão do autor, não é neutra: os vários ângulos adotados para a exposição de uma determinada situação pressupõem uma seleção e indicam afetividade. 


FRAGMENTO DE:

Fernandes, C. Ronaldo. O narrador do romance: e outras considerações sobre o romance. 1 ed. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996. 



MISTÉRIOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA - POR QUE VOCÊ ESCREVE?



Em 2006, o professor e bibliotecário pernambucano, José Domingos de Brito lançou uma coleção de livros composta de cinco volumes chamada Mistérios da criação literária, sendo o primeiro e segundo volumes intitulados "Por que escrevo?" e "Como escrevo?", com perguntas fundamentais aos escritores sobre os mistérios que envolvem o processo de criação literária. 

O primeiro volume traz uma série de depoimentos de escritores e poetas, como: Dalton Trevisan, Carlos Drummond de Andrade, George Orwell, Clarice Lispector, Lya Luft, Jean-Paul Sartre, João Cabral de Melo Neto, José Saramago, Júlio Cortázar, Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Truman Capote, entre muitos outros, respondendo a essa pergunta tão íntima, repleta de significados pessoais para cada um e, muitas vezes um tanto desconfortável para alguns. 

Confira agora algumas respostas:

"A literatura foi o caminho que eu encontrei para enfrentar essa bela tarefa de viver". (Ariano Suassuna)

"Escrever para mim é indagar." (Lya Luft)

[...] "escrevo quando dá vontade, com ternura. Às vezes, fico semanas sem pegar na caneta. É claro que com o passar do tempo vou ficando angustiado. Preocupado. Será que morri?" (Dalton Trevisan)

"No meu caso, num certo sentido, é o desejo interior de dar um testemunho do meu tempo, da minha gente e principalmente de mim mesma: eu existi, eu sou, eu pensei, eu senti e eu queria que você soubesse. No fundo, é esse o grito do escritor, de todo artista. Creio que o impulso de todo artista é esse. É se fazer ver. Eu existo, olha pra mim, escuta o que eu quero dizer: tenho uma coisa pra te contar. Creio que é por isso que a gente escreve." (Rachel de Queiroz) 

"Antes eu dizia: Escrevo porque não quero morrer. Mas agora eu mudei. Escrevo para compreender. O que é um ser humano?" (José Saramago) 

"Por que escrevo é um negócio complicado... Eu tenho a impressão de que a gente escreve por dois motivos. Ou por excesso de ser --- é o tipo do escritor transbordante, como a maioria dos escritores brasileiros; é uma atitude completamente romântica --- ou por falta de ser. Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar. Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. A poesia preenche um vazio existencial. Às vezes, eu escrevo porque quero dizer uma determinada coisa que eu acho que não foi dita; às vezes porque me interessa que conheçam meu ponto de vista. Às vezes, escrevo também por prazer." (João Cabral de Melo Neto)

"Porque a criação só pode encontrar seu acabamento na leitura; porque o artista deve confiar a outro a tarefa de concluir o que ele começou; porque somente através da consciência é que ele pode se ter como essencial a sua obra e toda obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que ele faça passar à existência objetiva o descobrimento que empreendi por meio da linguagem."  (Jean-Paul Sartre)

[...] "Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista, se não fosse também uma experiência estética." (George Orwell) 

"Tenho a impressão de que se eu soubesse responder a essa pergunta deixaria de ser escritor. Não haveria condição. Não saberia dizer, não. Está além da minha compreensão. Esta pergunta é tão grave como se perguntasse: Por que vive? Por que ama? Por que morre? Talvez eu escreva para atender a essas três presenças que são as únicas que existem na vida de um homem. No verso de Eliot: 'Birth, copulation and death'; eu diria 'nascimento, amor e morte'. Não sei por que escrevo. Eu nasci, virei homem e vou morrer." (Fernando Sabino)

"Eu escrevo para salvar a alma." (Fernando Pessoa)

"Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que foi essa que segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever." (Clarice Lispector) 

"Posso dizer sem exagero, sem fazer fita, que não sou propriamente um escritor. Sou uma pessoa que gosta de escrever, que conseguiu talvez exprimir algumas de suas inquietações, seus problemas íntimos, que os projetou no papel, fazendo uma espécie de psicanálise dos pobres, sem divã, sem nada. Mesmo porque não havia analista no meu tempo, em Minas."(Carlos Drummond de Andrade) 

Mas... e você? Por que você escreve mesmo? 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Brito, de Domingos José. Por que escrevo? Coleção Mistérios da Criação Literária. Vol 1. 1 ed. São Paulo: Escrituras, 1999. 











QUASE MEMÓRIA - O FILME




Baseado no romance Quase memória, de Carlos Heitor Cony, lançado em 1995 após um hiato de 20 anos na carreira do autor e que lhe rendeu um Prêmio Jabuti, o filme parte das memórias de um narrador, evocadas a partir de um embrulho que ele recebe, muito possivelmente enviado por seu pai.

Tal embrulho vai reacender velhas memórias de seus tempos de criança e adolescente, retratando a intensa relação de amor e afeto, cumplicidade e outros sentimentos que se criam e se desdobram entre pai e filho. 

Entretanto, um detalhe chama a atenção nesse episódio , apesar de todo o cuidado e dedicação dispensados na confecção daquele embrulho, como relatado nesse fragmento do romance:

Foi então que olhei bem o embrulho. A princípio apenas suspeitei. E ficaria na suspeita se não houvesse certeza. Uma das faces estava subscritada, meu nome em letras grandes e a informação logo embaixo, sublinhada pelo traço inconfundível: "Para o jornalista Carlos Heitor Cony". 
Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário, só ele escreveria meu nome daquela maneira, acrescentando a função que também fora a sua. Sobretudo, só ele destacaria o fato de alguém ter se prestado a me trazer aquele embrulho. Ele detestava o correio normal, mas se alguém o avisava que ia a algum lugar, logo encontrava um motivo para mandar alguma coisa a alguém por intermédio do portador. 
[...]
Até mesmo o cheiro --- pois o envelope tinha um cheiro --- era o cheiro dele, de fumo e água de alfazema que gostava de usar, metade por vaidade, metade por acreditar que a alfazema cortava o mau-olhado, do qual tinha hereditário horror. 
Recente, feito e amarrado há pouco, tudo no envelope o revelava: ele, o pai inteiro, com suas manias e cheiros.
Apenas uma coisa não fazia sentido. Estávamos --- como já disse --- em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de janeiro de 1985. (CONY, p. 10-11, 1995)

Sim, o pai havia morrido há pelo menos dez anos. Então, como se explica esse embrulho enviado em data tão recente ao narrador? É o que vamos descobrir através das memórias que esse embrulho suscitará em seu destinatário, enquanto decide se abre ou não o pacote. 

Memórias pueris e cativantes que criam um clima de saudade e nostalgia, remetendo-nos às nossas próprias lembranças, fazendo-nos rir e chorar. Memórias que valem a pena ser revisitadas! Um filme que enternece e emociona.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
Cony, H. Carlos. Quase memória. 24 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.