O PONTO DE VISTA OU FOCO NARRATIVO



[...] Diz respeito ao prisma adotado pelo narrador de conto, novela e romance. Corresponde à indagação: quem narra? e de que perspectiva? [...] O narrador é o contador de histórias, espécie de alter-ego ao qual o escritor transfere a incumbência de narrar. É que no ato de compor a narrativa, o escritor se desdobra numa terceira pessoa, num "ele" que assume a função de relatar, de forma que o "eu" do narrador não se confunde com o "eu" do escritor; este, despe-se da sua individualidade civil para vestir um outro "eu", tão inventado quanto as histórias narradas.

[...] De qualquer modo, o "eu" do narrador diferença-se do "eu" do escritor, à semelhança do "eu" lírico e o "eu" do poeta: a voz que fala é a do escritor, por meio da voz alheia, criada para a ocasião e de acordo com o que pretende no momento. De onde a distância psicológica ser aferível em dois planos: 1) entre o escritor e o narrador; 2) entre o narrador e a história.

[...] O primeiro foco narrativo a considerar é o do escritor/narrador onisciente: diminuída a distância entre o autor e o narrador, e estabelecida a fusão entre ambos, o ponto de vista onisciente é aquele em que o autor/narrador, qual um deus, tudo conhece da história e tudo pode esquadrinhar, inclusive a vida mental das personagens. [...] Em suma, o ponto de vista onisciente pertence ao narrador, mais do que ao autor, mas a distância entre os dois pode reduzir-se ao mínimo sem haver comprometimento do aspecto literário do texto.


O segundo ponto de vista é o da 1ª  pessoa (do singular ou do plural), assumido: 1) pela (s) personagem (ens) central (is); 2) por uma personagem secundária; 3) pelo narrador-testemunha. [...] No primeiro caso, o protagonista narra a sua história e reporta-se às demais personagens na razão direta da sua participação; no segundo, a incumbência se desloca para um dos figurantes menores, mas a história gira em torno de uma outra personagem; no último caso, o narrador torna-se testemunha, ou seja, simples espectador de conflitos alheios. Quando não compreende claramente o que presencia, chama-se narrador ingênuo ou inocente (como o idiota que narra a primeira parte de O som e a Fúria, de William Faulkner).

[...] O foco narrativo na 3ª pessoa igualmente se fragmenta em 3 tipos, conforme se trate de personagem central, de personagem secundária, ou de narrador-testemunha. A meio caminho entre a onisciência e a 1ª pessoa, reflete uma considerável distância entre o autor e o narrador, e entre este e a história: o ângulo visual está reduzido a alguém que narra, quer na qualidade de protagonista, quer de personagem secundária, quer de observador. [...] Este ponto de vista distingue uma personagem capaz de narrar, que funciona como uma espécie de disfarce do autor, na medida em que este lhe delega a tarefa de visualizar a história que almeja transmitir, mas ao mesmo tempo lhe concede o privilégio de enquadrar tudo na sua óptica pessoal.


[...] Outras noções, porém, se integram no patrimônio crítico, como a do "narrador digno de confiança" (narrator reliable), "quando fala ou age de acordo com as normas da obra (isto é, as normas do autor implícito)", e "narrador indigno de confiança ou suspeito" (narrator unreliable), quando não se comporta segundo as normas da obra, vale dizer, "na medida em que é passível de errar"; todavia, a "suspeição não significa mentir, embora o recurso aos narradores deliberadamente mentirosos tenha sido muito usado por modernos romancistas (A Queda, de Camus; O filho natural, de Calder Willinghan, etc.).

[...] O narrador onisciente constitui, genérica e historicamente, o ponto de vista mais difundido, por certo em razão do primitivo impulso, ainda enraizado, que convertia uma pessoa em contador de histórias. Guerra e paz (Tolstoi), Os Maias (Eça de Queiros), A montanha mágica (Thomas Mann), exemplificam à perfeição tal enfoque.

[...] O emprego da 1ª pessoa acarreta uma limitação do horizonte narrativo, uma vez que os acontecimentos são divisados de um só ângulo; em compensação, empresta verossimilhança e intensidade ao enredo. Frequentemente no romance epistolar dos séculos XVII e XVIII e na ficção moderna, quer no singular, quer no plural (Osman Lins, em Nove, Novena), em presença de outros focos, ou autonomamente, e na proporção em que o "realismo" onisciente cede lugar a um realismo relativista. Em qualquer caso, decorre dum esforço de autenticidade por parte do autor, que se manifesta através da distância aberta pela máscara do "eu" do narrador. Resultante de acendrado ideal de fazer que a obra se escreve por si própria, põe ênfase no ponto de vista do narrador, não do escritor. Por outro lado, assinala a falência do pressuposto de que o escritor tudo pode abranger com o seu olhar: o caos se insinua onde parecia reinar a ordem cósmica. Dom Casmurro (de Machado de Assis) explora o processo em que a personagem secundária (seundária apesar de o título do romance lhe dizer respeito) exerce as funções de narrador, ao passo que Aparição, de Vergílio Ferreira, nos mostra uma narrativa conduzida pelo protagonista-narrador.


O foco narrativo da 3ª pessoa avizinha-se da onisciência, dado que a personagem não é o narrador. Trata-se de uma onisciência relativa, na medida em que o autor/narrador circunscreve preconcebidamente o espaço coberto pela visão. De qualquer forma, no interior dessa realidade limitada, pratica livremente o seu poder demiúrgico. Mercê da contiguidade entre a perspectiva onisciente e a da 3ª pessoa, alguns autores se referem à segunda como onisciência relativa ou seletiva (quando focaliza uma personagem), ou múltipla (quando privilegia várias).

[...] Por outro lado, o ponto de vista na 3ª pessoa, sobretudo quando seletivo, aparenta-se a uma história na 1ª pessoa "em que se mudasse o 'eu' para 'ele' ou 'ela', e o ponto de vista se tornasse meio externo, meio interno, com o autor na função de narrador, e a personagem na de quem vê". Mais adequada ao conto e às narrativas planas, nem por isso a 3ª pessoa relativa deixa de ser utilizada no romance, como é o caso de O retrato de um artista quando jovem (de James Joyce), narrado na perspectiva do protagonista, Stephen Dedalus. Quanto à 3ª pessoa múltipla, ajusta-se melhor ao universo do romance, por aproximar-se da onisciência total, como é o caso de Fogo morto (de José Lins do Rego), cujas três partes são focalizadas de prismas diferentes, conforme as personagens que prevalecem.

[...] Os vários pontos de vista constituem truques, disfarces ou encarnações teatrais, com que o autor dissimula que conhece tudo quanto integra a narrativa. Mesmo quando a personagem espalma a sua autonomia, o ficcionista continua a exercer o poder de mando: sabe-a autônoma, pois assim a concebeu e estruturou. Enfim, onisciente porque consciente dos materiais da ficção: o Homem, a Natureza, o Tempo, a História.

Obs: Voltar-se-á ao assunto, enfocando outros aspectos, segundo outros estudiosos do tema.


RETIRADO DE:
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

O MORRO DOS VENTOS UIVANTES E SUAS MUITAS VERSÕES PARA NO CINEMA



Até onde se sabe já foram feitas dez adaptações cinematográficas de O morro dos ventos uivantes por diferentes países. Cada uma com suas particularidades. A primeira foi feita em 1920 com a técnica rudimentar do cinema mudo da época, cobrindo o enredo todo do livro com duração de 1h30min, entretanto não se sabe se ainda existem cópias do filme. 

A segunda e mais lembrada, feita em 1939 (do vídeo acima), por William Wyler e estrelada por Lawrence Olivier e Merle Oberon, foi marcada pelo clima tenso nos bastidores. Indicada ao Oscar no ano seguinte, acabou perdendo a estatueta para E o vento levou, restando-lhe o Oscar de Melhor Fotografia em Preto e Branco, tornando-se um clássico.  É desta versão a inspiração de Kate Bush para escrever e cantar sua música Wuthering Heights. Esta versão, porém, deixa bastante a desejar em relação ao enredo do livro, pois elimina toda a terceira geração da história, ou seja, a geração mais jovem formada por Cathy, Linton e Hareton, centrando a narrativa no triângulo Heathcliff, Catherine e Edgar Linton.

Além disso, o perfil psicológico de Heathcliff não apresenta a mesma força e densidade que possui no romance de Emily Bronte, o qual é marcado por suas constantes mudanças e turbulências, confundindo o leitor. Heathcliff é um personagem que ao mesmo tempo que encanta, desperta também o ódio, pois nunca se sabe o que esperar de seu gênio inquieto e instável.

Há também uma terceira adaptação parcial da obra feita em 1954, com o título de Os escravos do rancor, feita pelo diretor espanhol Luis Buñuel, ambientada no México do século XIX. 

A quarta adaptação é de 1966 realizada em terras indianas, mais precisamente em Bollywood com o título de Dil Diya Dard Lyia, além de ser inspirada na versão de 1939, do cineasta americano William Wyler.

Uma quinta versão da obra de Emily foi feita em 1970, intitulada O solar dos ventos uivantes e faz supor que Heathcliff seja um filho bastardo do Sr. Earnshaw, sendo, portanto, meio-irmão de Catherine. Este é um detalhe que o romance não deixa claro.

A sexta versão aparece em 1985 na França, com o título de Hurlevent e com direção de Jacques Rivette, trazendo algumas mudanças nos nomes das personagens e na abordagem psicológica do enredo. 


A sétima adaptação denominada Arashi ga oka vem em 1988 pelas mãos do cinema japonês. A trama gira em torno de um casal profano que entra em uma comunidade, mas que em algum momento é expulso devido a seu caráter marginal. 

Uma outra versão é lançada em em 1991 com o título Hihintayin Kita sa Langit, pelo cinema filipino. Considerada fiel à obra original, sofreu alterações de nomes e cenários para melhor se adaptar ao público local. 

A nona adaptação para as telas de O morro dos ventos uivantes é de 1992, estrelada por Ralph Fiennes (que estreava no cinema) e Juliette Binoche, que fez o papel da Cathy mãe e da Cathy filha (vídeo abaixo). Trata-se de uma versão mais fiel do livro, dando-nos um painel mais amplo da história e muito bem feita.

A décima versão feita em 2011, foi uma produção bastante tumultuada com várias trocas de elenco e de diretores. O enredo bastante enxuto em relação ao original, tal qual a versão de 1939 também eliminou uma geração inteira do original de Emily, mas o filme chama a atenção pela bela fotografia. 

 

PROCESSO DE ADAPTAÇÃO DE OBRAS PARA A MÍDIA CINEMATOGRÁFICA



[...] A adaptação é uma transcrição de linguagem que altera o suporte linguístico utilizado para contar a história. Isto equivale a transubstanciar, ou seja, transformar a substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem. Portanto, já que uma obra é uma unidade de conteúdo e forma, no momento em que fazemos nosso conteúdo e forma, no momento em que fazemos nosso conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, forçosamente estamos dentro de um processo de recriação, de transubstanciação.
Claro que o fato de recriar implica o risco de que o produto reelaborado perca em relação ao original. No entanto, às vezes sucede que a adaptação resulta melhor do que o próprio original. Isto se deve ao fato de o material da história se prestar melhor para outro tipo de suporte dramático. A adaptação implica escolher uma obra adaptável, isto é, que possa ser transformada sem perder qualidade; e nem todas as obras se prestam a este gênero de trabalho. Um exemplo típico de adaptação impossível é a obra Ulisses, de James Joyce, uma vez que o que a caracteriza são os pensamentos íntimos, os acontecimentos mentais de uma personagem. [...] Uma adaptação implica certas limitações criativas, uma vez que o roteirista tem de levar em conta o conteúdo da obra, isto é, os ambientes, as personagens, as intenções, etc.

GRAUS DE ADAPTAÇÃO

1. Adaptação propriamente dita

Consiste em ser o mais possível fiel à obra. Não há alteração da história, nem de tempo, nem de localizações, nem de personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e conflitos presentes no original. Deve-se ter em conta que este tipo de trabalho não é uma mera ilustração audiovisual, mas que é preciso ultrapassar os limites da fidelidade para se conseguir um roteiro correto e eficaz.

2. Baseado em...

Neste caso, exige-se que a história se mantenha íntegra (embora se altere o final). Podemos modificar os nomes das personagens e algumas situações, e embora, a fidelidade que o adaptador guarda ao original seja menor, este deve poder ser reconhecido.

3. Inspirado em...

O roteirista toma como ponto de partida a obra original: seleciona uma personagem, uma situação dramática e desenvolve a história com uma nova estrutura. Contudo, alguns aspectos funcionais da obra são respeitados e mantidos, como por exemplo, o tempo em que a ação tem lugar.

4. Recriação

O roteirista apodera-se do plot principal e trabalha livremente com ele, isto é, muda as personagens, desloca a história para outro tempo e espaço e cria uma nova estrutura. O grau de fidelidade do roteirista para com o original é mínimo.
[...] Por outro lado, não se deve confundir recriação com desvirtualização. Desvirtuar é fazer com que a obra original fique desfigurada no seu ethos; ao passo que na recriação este se mantém intacto.

5. O Teatro

A grande vantagem de se adaptar uma obra de teatro é que os diálogos principais já foram escritos e o material está organizado dramaticamente. Mesmo assim, é muito difícil captar o impacto de uma peça, uma vez que esta foi pensada baseando-se na palavra viva, pressupondo uma relação direta, corpo a corpo, do ator com o público.
Em teatro, os diálogos expõem, frequentemente, o que se passa fora da cena, em vez de o mostrar. Na versão audiovisual, deve-se evitar a utilização deste recurso, fazendo com que tudo aquilo que é dito ou contado no original teatral seja visualizado. Por outro lado, no teatro trabalha-se num palco, ao passo que o audiovisual tem, neste aspecto, possibilidades ilimitadas. De modo que, neste tipo de adaptação, deve-se tentar multiplicar de forma criativa o número de cenários e sua verossimilhança.
A teatralidade, em princípio um defeito [...] pode também ser a essência da obra, sem perder nada do seu valor cinematográfico, como acontece com muitos títulos da cinematografia de Shakespeare em versões de Laurence Olivier, Orson Welles, Polanski ou Kenneth Branagh, [...] alguns notáveis adaptadores do mestre.

6. O Conto

Dado que a característica básica do conto é a síntese, um único dos seus parágrafos pode conter material suficiente para se desenvolver todo um plot. Portanto, quando adaptamos um conto, encontramo-nos com um material básico enormemente condensado, a partir do qual se deve construir o restante: diálogo, ação dramática, plots, etc.
Tudo isto terá de ser feito com muito cuidado para manter o espírito da obra. Embora o roteirista seja livre para acrescentar ou mudar alguns aspectos funcionais, as características básicas tem de ser mantidas porque se devem reconhecer as obras e sua atmosfera. Este cuidado é importante: podemos recriar e acrescentar, mas nunca descaracterizar ou desfigurar a obra original.

7. O Romance

Diferentemente do conto ou da obra de teatro, o trabalho de adaptação de um romance baseia-se em condensar a obra, eliminar os acontecimentos que não sejam essenciais e enaltecer o núcleo dramático principal, seu eixo vertebral.
Tal como acontece com o conto, o romance não costuma ter diálogos; consequentemente, o roteirista terá que os criar, partindo do perfil das personagens, respeitando, tanto quanto possível, as indicações do autor original (se esse contato for possível).

RETIRADO DE:

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 329-335

O LEITOR - O FILME (2008)








Belíssimo trabalho de adaptação para as telas, do romance The reader (O leitor), do alemão Bernhard Schlink, publicado em 1995, feita pelo diretor Stephen Daldry, com Kate Winslet e Ralph Fiennes no elenco. Este trabalho rendeu a Kate Winslet o Oscar de Melhor Atriz de 2009.

Daldry também dirigiu o filme As horas, em 2002, adaptação do romance de mesmo título, de Michael Cunninghan (baseado na vida da escritora Virgínia Woolf), pelo qual ganhou o Prêmio Pulitzer, conferido a pessoas que realizam trabalhos memoráveis e de excelência nas áreas do Jornalismo, Música e Literatura, nos Estados Unidos.

OS SEGREDOS DE O LEITOR



O romance do alemão Bernhard Schlink narra a história de Michael Berg, um jovem de 15 anos que se apaixona por uma mulher misteriosa e vinte anos mais velha, Hanna Schmitz. Seus encontros amorosos seguem sempre um mesmo ritual: um banho, a leitura de trechos de romances (Tolstoi, Hemingway, Dickens) e poesias (Goethe, Schiller, Odisséia) pelo rapaz e finalmente o ato de amor. Ele nunca chega a saber muito sobre a vida dela nem manifesta grande curiosidade em conhecer e ela tampouco em falar de si mesma.

Após um período de intensa felicidade que parecia interminável para o rapaz, Hanna desaparece de sua vida abruptamente. Ele tem certeza de que nunca mais a verá, mas quer o destino que se engane. Sete anos depois quando já estudante de Direito, Michael será convidado para assistir, junto com seu grupo de trabalho, a um julgamento contra criminosos que fizeram parte do regime de Hitler.

Neste julgamento se depara com sua antiga amante sentada no banco dos réus. É acusada de cometer crimes de guerra e de extermínio de judeus em um campo de concentração da Alemanha nazista. Transtornado com a descoberta, Michael dividido entre as recordações de seu passado com Hanna e a indignação que o caso lhe desperta, faz do julgamento uma oportunidade para descobrir quem verdadeiramente é a mulher com quem viveu uma paixão na adolescência.

E entre observações e reflexões, ele percebe que ela esconde um segredo mais vergonhoso para si própria do que os crimes que cometera, fazendo com que deixe sua posição de espectador para se envolver no caso, tal como explica neste fragmento do romance:

Por fim ela desistiu. Falava somente quando lhe faziam perguntas, suas respostas eram curtas, só o necessário, vagas algumas vezes. Como para deixar visível que desistira, a partir de então permanecia sentada quando estava falando. [...] Às vezes, perto do final do julgamento, eu tinha a impressão de que o júri já estava cansado, querendo encerrar finalmente o caso, sem prestar mais atenção nele, com o pensamento em outro lugar, de volta ao presente após longas semanas visitando o passado.
Eu também já estava cansado. Mas não podia encerrar o caso, deixá-lo para trás. Para mim o julgamento não terminava, mas começava ali. Eu tinha sido espectador e, de repente, me tornava um envolvido, um participante, um membro do júri. Não tinha procurado nem escolhido este novo papel, mas tinha de exercê-lo, querendo ou não, fazendo alguma coisa ou me comportando de modo completamente passivo. (p. 152-153)

Apesar de condenada à prisão perpétua, a ajuda de Michael fará com que Hanna supere a humilhação que seu segredo lhe provoca, levando-a a um final inesperado, mas digno, segundo seus valores. E, apesar do tema que enfoca, o livro nos causa um encantamento dada a delicadeza com que o autor expõe o drama e a história de Hanna Schmitz.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SCHLINK, B. O leitorTrad. Pedro Sussekind. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. 

CINEMA - UMA LINGUAGEM E UM SER



Tornado linguagem graças a um escrita própria, que se encarna em cada realizador sob a forma de um estilo, o cinema transformou-se, por esse motivo, num meio de comunicação, de informação, de propaganda, o que não constitui, evidentemente, uma contradição de sua qualidade de arte. [...] Assim, para Jean Cocteau, "um filme é uma escrita em imagens", enquanto que Alexandre Arnoux considera que "o cinema é uma linguagem de imagens com o seu vocabulário próprio, a sua sintaxe, flexões, elipses, convenções, gramática", Jean Epstein vê nele "a língua universal ", e Louis Delluc afirma que "um bom filme é um bom teorema".

[...] Mas poder-se-á verdadeiramente considerar que o cinema seja uma linguagem dotada da maleabilidade e do simbolismo que esta noção implica? Cohen-Séat não parece acreditar nisso quando escreve: "desde que se trate de reencontrar o rasto  das disciplinas da linguagem convencional na agitação transbordante das imagens fílmicas e, sobretudo, se se tenta procurar qualquer meio de secundar estas disciplinas, de secundar o seu estabelecimento, é necessário admitir, primeiro do que tudo, evidentemente, que a filmografia ainda não ultrapassou uma era de harmonias imitativas.

Os nossos filmes pertenceriam, por assim dizer, à idade das onomatopeias visuais e sonoras, das primitivas evocações diretas. Esses signos ingênuos seriam chamados para uma organização mais elaborada e, por consequência, para acolher ou instituir neles próprios uma espécie de convencionalismo. É conveniente acrescentar, claro, que o caráter primitivo da expressão fílmica não nos obriga, de modo algum, a considerar o filme como representando "a mentalidade do selvagem desenvolvida numa linguagem civilizada". Considerá-lo-íamos antes como uma forma de linguagem ainda não evoluída, inserindo-se numa civilização avançada e, talvez, capaz consequentemente, de tomar uma via de evolução original". A estas restrições, sem dúvida alguma, muito severas, embora bastante inteligentes, Gabriel Audisio acrescenta outras, de caráter histórico: "diz-se também que o cinema é uma linguagem, o que é falar muito imprudentemente. Quem confundir linguagem com meio de expressão expõe-se a graves dissabores. A impressão é um meio de expressão: pôde esperar que a inventassem. Porque o homem teve sempre diversos meios de se exprimir, nem que fosse com gestos... Mas a música, a poesia e a pintura são linguagens: não me parece que tenham sido inventadas ontem, nem que se possa inventar outras. A linguagem nasceu com o homem".

Talvez. Mas então admitir-se-á que o cinema é a forma mais recente da linguagem definida como "sistema de signos destinados à comunicação". Contudo, o semiólogo Christian Metz, autor desta definição, afirma que ela não pode abarcar a flexibilidade e a riqueza da linguagem cinematográfica: "reprodução ou criação, o filme ficaria sempre aquém ou além da linguagem" devido ao que "existe de abundante nesta linguagem tão diferente de uma língua, tão rapidamente submetida às inovações da arte como às aparências perceptivas dos objetos representados". É o seu aspecto pouco sistemático que diferencia a linguagem cinematográfica da língua: as "diversas unidades significativas minimais" não tem no seu interior "significado estável e universal" e é isso que permite classificar o cinema entre outros "conjuntos-significantes", tais como "os que formam as artes ou os grandes meios de expressão culturais".

Mas o que distingue o cinema de todos os outros meios de expressão culturais é o poder excepcional que lhe advém do fato de a sua linguagem funcionar a partir da reprodução fotográfica da realidade. Com efeito, com ele, são os próprios seres e as próprias coisas que aparecem e falam, dirigem-se aos sentidos e falam à imaginação: a uma primeira abordagem parece que qualquer representação (o significante) coincide de forma exata e unívoca com a informação conceptual que veicula (o significado). Na realidade, a representação é sempre mediatizada pelo tratamento fílmico, como sublinha Christian Metz: "se o cinema é linguagem, é porque ele opera com a imagem dos objetos, não com os objetos em si. A duplicação fotográfica [...] arranca ao mutismo do mundo um fragmento de quase-realidade para dele fazer o elemento de um discurso. Dispostas de forma diferente do que surgem na vida, transformadas e reestruturadas no decurso de uma intervenção narrativa, as efígies do mundo tornam-se elementos de um enunciado".

Isto significa que a realidade que aparece na tela nunca é totalmente neutra, mas sempre sinal de algo mais, num qualquer grau. Bernard Pingaud comentou esta dialética significante-significado da seguinte forma: "contrariamente aos seus análogos reais, vemos sempre o que os objetos querem dizer e, quanto mais este conhecimento é evidente, mais o objeto se dilui nele, perde o seu valor específico. De forma que o filme parece condenado quer à opacidade de um sentido rico, quer à clareza de um sentido pobre. Tanto pode ser símbolo, como enigma. Esta ambiguidade de relação entre o real objetivo e a sua imagem fílmica é uma das características fundamentais da expressão cinematográfica e determina em grande parte a relação do espectador com o filme, relação que vai desde a crença ingênua na realidade do real representado à percepção intuitiva ou intelectual dos signos implícitos como elementos de uma linguagem.

Esta constatação leva à aproximação da linguagem fílmica da linguagem poética em que as palavras da linguagem prosaica se enriquecem com múltiplos significantes potenciais. E pode-se pensar que a linguagem fílmica vulgar, tornando-se um meio que não transporta em si próprio o seu fim porque se limita a ser um simples veículo de sentimentos ou de ideias, constitui uma espécie de doença infantil do cinema, limitando-se a apresentar um catálogo de receitas, de procedimentos e de habilidades linguísticas pretensamente produtores de "significados estáveis e universais".

Porque se pode verificar que muitos filmes, perfeitamente eficazes no plano da linguagem, se mostram nulos do ponto de vista estético, do ponto de vista de ser fílmico: não tem exisência artística. Há filmes, escreve Lucien Wahl, "cujo argumento é suficiente, a realização não tem erros, os atores tem talento, mas o filme não vale nada. Não conseguimos ver o que lhes falta, mas sabemos que é o principal". O que lhes falta é aquilo a que alguns chamam a alma, ou a graça e a que eu chamo o ser. "Não são as imagens que fazem um filme", escreveu Abel Gance, "mas a alma das imagens". Para que esta revolução da linguagem, esta elevação do cinema-linguagem na direção do cinema-ser se realizasse, foi importantíssima a contribuição de nomes como Griffith, Eiseinstein, e mais tarde, Ozu, Mizoguchi, Antonioni, Resnais e Godart.

[...] É com efeito possível estudar a linguagem fílmica a partir das categorias da linguagem verbal, mas qualquer assimilação de princípio seria simultaneamente absurda e vã. Creio que é necessário afirmar desde o início a originalidade absoluta da linguagem cinematográfica. E a sua originalidade vem essencialmente do seu poder total, figurativo e evocador, da sua capacidade única e infinita de mostrar simultaneamente o invisível e o visível, de visualizar o pensamento ao mesmo tempo que o vivido, de conseguir a fusão do sonho e do real, da volatilidade imaginativa e da evidência documental, de ressuscitar o passado e atualizar o futuro, de conferir a uma imagem fugitiva maior carga persuasiva do aquela que é oferecida pelo espetáculo do cotidiano.

Paul Valéry exprimiu muito bem o deslumbramento e a surpresa que lhe causava este poder total do cinema: "na tela esticada, no plano sempre puro onde nem a vida nem o próprio sangue deixam traços, os acontecimentos mais complexos reproduzem-se o número de vezes que quisermos. As ações são aceleradas ou demoradas. A ordem dos acontecimentos pode ser alterada. Os mortos revivem e riem. [...] Vemos a precisão do real revestir-se de todos os atributos do sonho. É um sonho artificial. É também uma memória exterior, dotada de uma perfeição mecânica. Finalmente, por meio das paragens e das ampliações, a própria atenção deixa-se prender. A minha alma encontra-se dividida por estes fascínios. Ela vive na tela toda-poderosa e movimentada; participa nas paixões dos fantasmas que ali tomam forma. [...] Mas o outro efeito dessas imagens é mais estranho. Esta facilidade critica a vida. Que valor tem agora estas ações e estas emoções a cujas mudanças e monótona diversidade eu assisto? Já não tenho vontade de viver, porque não passa de aparência. Sei o futuro de cor".

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005. Trad. Lauro Antonio e Maria Eduarda Colares. (meio eletrônico)

SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO


Umberto Eco além de professor na Universidade de Bolonha é também escritor, tendo publicado alguns romances como: O nome da rosa (1980) e O pêndulo de Foucault (1988). Em Seis passeios pelos bosques da ficção, o autor utilizando os conceitos de autor e leitor-modelo discute o ato da leitura e os modos de recepção do texto nos contos de fada, nos romances policiais, nas obras de Gérard de Nerval, Edgar Allan Poe, Alexandre Dumas, James Joyce, Kafka, entre outros.

Segundo o autor, os "seis passeios" referem-se aos seis capítulos do livro e o "bosque é uma metáfora para o texto narrativo, não só para o texto dos contos de fadas, mas para qualquer texto narrativo". Tomando emprestada uma metáfora criada por Jorge Luis Borges, o autor diz que "um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção". (p. 12)

Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo. (...) Às vezes o narrador quer nos deixar livres para imaginarmos a continuação da história. Vejamos, por exemplo, o final da Narrativa de Arthur Gordon Pym, de Poe:

"E agora corremos para os amplexos da catarata, onde uma fenda se abria para nos receber. Contudo, surgiu em nosso caminho uma figura humana velada, muito maior em suas proporções que qualquer pessoa que habita entre os homens. E sua pele tinha a alvura perfeita de neve".

Aqui, onde a voz do narrador se cala, o autor quer que passemos o resto da vida imaginando o que aconteceu; e, com medo de que ainda não tenhamos sucumbido ao desejo de saber o que jamais nos será revelado, o autor - não a voz do narrador - acrescenta uma nota no final para nos dizer que, após o desaparecimento do Sr. Pym, "os poucos capítulos que completariam a narrativa [...] perderam-se irremediavelmente". Nunca escaparemos desse bosque - como aconteceu, por exemplo, com Júlio Verne, Charles Romyn Dake e H. P. Lovecraft, que resolveram ficar lá, tentando dar continuidade à história de Pym.

Mas existem casos em que o autor sadicamente quer nos mostrar (...) que estamos fadados a nos perder nos bosques por causa de nossas escolhas equivocadas. Vejamos Laurence Sterne, logo no início de Tristram Shandy: 

O que o casal Shandy estaria fazendo nesse delicado momento? A fim de dar tempo ao leitor para que chegue a algumas hipóteses razoáveis (até mesmo as mais embaraçosas), Sterne digressiona por um parágrafo inteiro (o que mostra que Calvino tinha razão em não desdenhar a arte da demora) e depois revela o equívoco cometido na cena inicial:

"Por favor, meu querido, disse minha mãe, não te esqueceste de dar corda no relógio? - Santo D...!, meu pai gritou, lançando uma exclamação, porém cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. Terá havido alguma mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com uma pergunta tão tola?"

(...) Então, o que quero dizer quando afirmo que no bosque da narrativa o leitor precisa fazer escolhas razoáveis? Neste ponto me cabe lembrar dois conceitos que já discuti alhures - a saber, os do Leitor-Modelo e do Autor-Modelo. O leitor-modelo de uma história não é o leitor-empírico. O leitor-empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto.

Quem já assistiu a uma comédia num momento de profunda tristeza sabe que em tal circunstância é muito difícil se divertir com um filme engraçado. E isso não é tudo: se assistir ao mesmo filme anos depois, mesmo assim talvez não consiga rir, porque cada cena irá lembrá-lo da tristeza que sentiu na primeira vez. Evidentemente, como espectadores empíricos, estaríamos "lendo" o filme de maneira errada. Mas "errada" em relação a quê? Em relação ao tipo de espectadores dispostos a sorrir e a acompanhar uma história que não os envolve pessoalmente. Esse tipo de espectador (ou de leitor, no caso de um livro) é o que eu chamo de leitor-modelo - uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. Um texto que começa com "Era uma vez" envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável.

(...) Nada nos proíbe de usar um texto para devanear, e fazemos isso com freqüência, porém o devaneio não é uma coisa pública; leva-nos a caminhar pelo bosque da narrativa como se estivéssemos em nosso jardim particular. Cabe, portanto, observar as regras do jogo, e o leitor-modelo é alguém que está ansioso para jogar. Naturalmente, o autor dispõe de sinais de gênero específico que pode usar a fim de orientar seu leitor-modelo, mas com freqüência esses sinais podem ser muito ambíguos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Trad. Hildegard Feist. (trecho retirado do Cap. I, p. 12-16)

UM POUCO SOBRE A TEORIA DO CONTO


O CONTO: UM GÊNERO?
A unidade de efeito (Poe)

A teoria de Poe sobre o conto recai no princípio de uma relação: entre a extensão do conto e a reação que ele consegue provocar no leitor ou o efeito que a leitura lhe causa. É o que Poe expõe no prefácio à reedição da obra Twice-told tales, de Hawthorne, em texto intitulado “Review of Twice-told tales”, de 1842. Aí o contista norte-americano parte do pressuposto de que “em quase todas as classes de composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância”. A composição literária causa, pois, um efeito, um estado de “excitação” ou de “exaltação da alma”. E como “todas as excitações intensas”, elas “são necessariamente transitórias”. Logo, é preciso dosar a obra, de forma a permitir sustentar esta excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve demais, esta excitação ou efeito ficará diluído.

Torna-se imprescindível, então, a leitura de uma só assentada, para se conseguir esta unidade de efeito. No caso do poema rimado, não deve “exceder em extensão o que pode ser lido com atenção em uma hora. Somente dentro deste limite o mais alto nível de verdadeira poesia pode existir”. É natural que entre estas formas, poema rimado/conto/romance, haja uma hierarquia, em função deste critério: qual o que mais favorece a leitura de uma só vez ou, como popularmente se diz, de um só fôlego?

A resposta de Poe é que “podemos continuar a leitura de uma composição em prosa, devido à própria natureza da prosa, muito mais longamente que podemos persistir, para atingir bons resultados, na leitura atenta de um poema. Este último, se realmente estiver preenchendo as expectativas do sentimento poético, induz a uma exaltação da alma que não pode ser sustentada por muito tempo”. E explica: “Todas as excitações intensas são necessariamente transitórias. Desta forma, um poema longo é um paradoxo. E sem unidade de impressão, os efeitos mais profundos não podem ser conseguidos”.

Da mesma forma que o poema rimado é superior ao conto no que respeita às suas potencialidades de conquistar o efeito único, o conto difere do romance, pois este, “como não pode ser lido de uma assentada, destitui-se, obviamente, da imensa força derivada da totalidade. Interesses externos intervindo durante as pausas da leitura, modificam, anulam ou contrariam em maior ou menor grau, as impressões do livro. Mas a simples interrupção da leitura será, ela própria, suficiente para destruir a verdadeira unidade”. Não é o que acontece na leitura do conto: “no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora de leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção”.

Assim, tendo o contista “concebido, com cuidado deliberado, um certo efeito único e singular a ser elaborado, ele então inventa tais incidentes e combina tais acontecimentos de forma a melhor ajudá-lo a estabelecer este efeito preconcebido. Se sua primeira frase não tende à concretização deste efeito, então ele falhou em seu primeiro passo. Em toda a composição não deve haver nenhuma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não esteja a serviço deste desígnio preestabelecido”.

Estas considerações atentam já, sistematicamente, para uma característica básica na construção do conto: a economia dos meios narrativos. Trata-se de conseguir, com o mínimo de meios, o máximo de efeitos. E tudo que não estiver diretamente relacionado com o efeito, para conquistar o interesse do leitor, deve ser suprimido. Tanto são importantes estas observações sobre a teoria do conto, que serão mais tarde retomadas por Poe em “The philosophy of composition” (1846). Ele continua aí a defender a totalidade de efeito ou a unidade de impressão que se consegue ao ler o texto de uma só vez, sem interrupções, na dependência direta, pois, da sua duração, que interfere na excitação ou elevação, ou na intensidade do efeito poético.

Para tanto, ao iniciar o processo do escrever estórias, é o efeito que o autor deve levar em conta: qual o efeito que pretende causar no leitor? A primeira pergunta que se faz é: “Dentre os inúmeros efeitos ou impressões a que o coração, o intelecto ou (mais geralmente) a alma são suscetíveis, qual deles, neste momento, escolherei?” O que pretende o autor? Aterrorizar? Encantar? Enganar? Já havendo selecionado o efeito, que deve ser tanto original quanto vívido, passa a considerar a melhor forma de elaborar tal efeito, seja através do incidente ou do tom: “se por incidentes comuns e um tom peculiar, ou o contrário, ou por peculiaridade tanto de incidentes quanto de tom”. E em seguida busca combinações adequadas de acontecimentos ou de tom, visando a “construção do efeito”.

Poe ilustra este percurso com a sua própria experiência na construção do poema “The Raven”, determinando as etapas de execução de um projeto: a extensão ideal de mais ou menos cem versos, o tom de tristeza, os recursos necessários para se atingir este tom: uso do refrão, tema da morte, espaço do quarto, símbolo do corvo, ambiente soturno, personagem sofrendo a ausência da amada morta, o desfecho com pergunta final: ainda veria a sua amada no outro mundo?

Se o poema – ou qualquer outra obra – for grande, haverá naturalmente uma divisão de leitura. No entanto, para cada período serão mantidas as mesmas exigências, com o objetivo de fisgar o leitor: manter a tensão sem afrouxá-la, para não dar ensejo a interrupções. Daí a conclusão lógica a que chega Poe: um poema longo nada mais é que “uma sucessão de (poemas) breves”, isto é, de efeitos poéticos breves que se sucedem. “Há um claro limite, quanto à extensão, para todos os trabalhos de arte literária – o limite de uma única assentada” – e continua: “embora em alguns casos de prosa, como no de Robinson Crusoé, que não exige unidade, este limite seja ultrapassado com vantagens”.

Neste caso, o desfecho (dénouement) torna-se também um elemento importante, no sentido de colaborar para o efeito que se deseja: “todo enredo, digno desse nome, deve ser elaborado para o desfecho, antes de se tentar qualquer coisa com a caneta. É somente com o desfecho constantemente em vista que podemos conferir a um enredo seu indispensável ar de conseqüência, fazendo com que os incidentes e, principalmente, em todos os pontos, o tom tendam ao desenvolvimento da intenção”.

Aliás, Julio Cortazar, no seu estudo sobre Poe, ressalta esta intenção de domínio sobre o leitor e suas relações com o orgulho, o egotismo, a inadaptação ao mundo, a “anormalidade”, a “neurose declarada” do contista e teórico Poe, que, naturalmente, interfere na construção das suas personagens e situações. O fato é que a elaboração do conto, segundo Poe, é produto também de um extremo domínio do autor sobre os seus materiais narrativos. O conto, como toda obra literária, é produto de um trabalho consciente, que se faz por etapas, em função desta intenção: a conquista do efeito único, ou impressão total. Tudo provém de minucioso cálculo. O poema não deve, pois, ser longo demais e nem breve demais. Poe situa-se, equilibradamente, no meio: “um poema breve demais pode produzir uma impressão vívida, mas nunca intensa e duradoura”. Sem uma certa continuidade de esforço, “sem uma certa duração ou repetição de propósitos a alma nunca é profundamente atingida”. Por isso tudo, “brevidade extrema degenerará em epigramatismo; mas o pecado da extensão extrema é ainda mais imperdoável”.

Estas mesmas propostas de leitura e teoria do poema Poe aplica à leitura do conto em prosa, definindo a sua medida de extensão – ou tempo de leitura: “referimo-nos à prosa narrativa curta, que requer de meia hora a uma ou duas horas de leitura atenta”.

BIBLIOGRAFIA
GOTLIB, B. N. Teoria do conto. 9 ed. São Paulo: Ática, 1999. Série Princípios. p. 32-37.

AS CARTAS DE KAFKA PARA FELICE BAUER


Neste livro, Elias Canetti faz um estudo da obra kafquiana através da compilação da correspondência que o escritor mantinha com Felice, uma de suas noivas, com quem não chegou a se casar. Estas cartas revelam os múltiplos conflitos interiores de Kafka: suas inseguranças, medos, complexos, a difícil relação com o pai, a hipocondria, o gosto pela solidão, a obsessão em relação à sua aparência física, entre outros. Pode-se dizer que são verdadeiros espelhos da alma humana. 

Ao mergulhar no universo particular de Kafka temos a impressão de que estamos diante de um indivíduo enredado em um complexo de inferioridade devastador, que se estende por todos os lados na solidão de um quarto escuro e fechado, lutando contra todos os seus fantasmas e tendo como uma das poucas válvulas de escape as cartas remetidas à então noiva, nas quais expõe todos os seus conflitos anímicos.

Kafka se revela completamente obcecado pela constatação de sua falta de atributos físicos, pois segundo ele mesmo: "sou a pessoa mais magra que conheço". Isto o incomodava de tal forma, que se sentia inapto para exercer qualquer tipo de atividade, seja em termos de lazer ou profissionalmente frente à grande força física de seu pai, pela qual sentia indisfarçável inveja. 

Em Carta a meu pai, o escritor discorre sobre a tumultuada relação que mantinha com seu pai, visto que segundo ele, seu tipo físico e psicológico não o agradava, pois era um homem forte fisicamente e empreendedor, com grande capacidade para a liderança e o autoritarismo. Kafka nem de longe possuía uma ou outra dessas características em comum com a figura paterna. Ao contrário. Kafka era franzino, de constituição física fraca, taciturno, hermético e sensível, como ele mesmo explica neste trecho:

Compara-nos a ambos: eu sou, para dizê-lo em breves palavras, um Löwy com certo fundo kafquiano, a quem, contudo, não impele essa vontade tipicamente kafquiana de viver, comerciar e conquistar, porém um aguilhão löwitico, que age em outra direção, mais escondido, mais tímido e que com freqüência se interrompe completamente. Tu, em troca, és um verdadeiro Kafka, em força, saúde, apetite, potência de voz, talento oratório, auto-satisfação, superioridade mundana, perseverança, presença de espírito, experiência e certa amplitude de vistas, claro que com os defeitos e as fraquezas que correspondem a todas estas virtudes e aos quais te levam teu temperamento e por vezes teu mau gênio. (KAFKA,  p. 79, 2003)

Seu pai via nisso sinais de desvios de personalidade, por vezes acusando-o de homossexualismo, pois considerava um comportamento inadequado para um homem e por isso, o humilhava constantemente diante de todos, exaltando e criticando seus pontos mais vulneráveis. Para a personalidade introvertida do escritor isso soava como rejeição paterna e exposição de sua figura ao ridículo, o que contribuía ainda mais para o desenvolvimento de um complexo crescente de inferioridade e hipocondria em relação à sua magreza.

Kafka foi ao longo de sua vida seguidamente ridicularizado e desencorajado pelo pai em todos os projetos que se propunha a realizar, inclusive em seus planos de casamento. Seu pai fazia questão de ressaltar sua incapacidade de levar adiante seus projetos, demonstrando uma espécie de prazer mórbido em destruir os sonhos do rapaz e ferir ainda mais a sua já escassa autoestima. Nas epístolas compiladas por Canetti, percebemos em Kafka a necessidade de transmitir para outros a responsabilidade de tomar decisões, que deveriam partir dele. O escritor revelando um lado manipulador incita a noiva a se posicionar contra ele a fim de que com esta atitude o encoraje a realizar seus projetos. Mas mesmo assim Kafka não consegue ir até o fim, permanecendo num eterno movimento de vai-e-vem, de avanço e recuo. Há algo em Kafka muito profundo que o impede de continuar firme no seu propósito de casamento com Felice após cinco anos de um relacionamento confuso e obscuro.

Nota-se ainda em Kafka o medo de se expor e, por isso, sua obra é o retrato fiel de sua personalidade obscura, taciturna e estranha até para ele próprio tão bem transfigurada no inseto de A metamorfose. Outro motivo para Kafka ter-se autorretratado em A metamorfose é o fato de que devido a seu complexo de inferioridade em relação ao mundo e aos seus semelhantes, ele próprio considerava-se um "inseto", quando se referia às suas atividades burocráticas, uma vez que atuara no comércio e nos serviços públicos. 

Para Kafka essas atividades limitavam sua capacidade criativa, daí a comparação com um inseto. Embora não seja explicitada na obra a que tipo de inseto Kafka se refere cabe interpretá-lo como uma barata, já que o escritor deixa algumas pistas durante a narrativa, utilizando-se de um recurso que tem por objetivo causar suspense e estranheza, típicos da personalidade kafquiana. Assim, para exprimir esse sentimento de isolamento do mundo e repugnância contra si mesmo, a barata parecia ideal por ser um tipo de inseto que vive nos subterrâneos e está vinculada à degradação, à sujeira, despertando por isso, asco nas pessoas e o desejo de livrar-se logo do animalzinho.

Além disso, como já citado anteriormente, sua constituição física desprovida de gordura e massa muscular acentuava ainda mais a necessidade de diminuir-se diante dos outros, o que lhe dava a sensação de não pertencer ao mundo dos vivos, mas sim dos mortos. Vê-se que tudo contribuía para a decadência física e literária de Kafka, entretanto, é na e através da Literatura que ele conseguirá encontrar sua válvula de escape, tornando-se um dos maiores autores clássicos. A obra de Canetti é mais um estudo que visa compreender os mistérios que envolvem a intimidade deste "autor-inseto" e, por consequência, os mistérios intrigantes presentes na literatura kafquiana sob a ótica da personalidade complexa de seu autor. 

Configura-se, pois, em um bom caminho para entender o universo de Kafka.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANETTI, Elias. O outro processo: as cartas de Kafka a Felice. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
KAFKA, Franz. A metamorfose / Um artista da fome / Carta a meu pai. Trad. Pietro Nassetti e Torrieri Guimarães. 1 ed. São Paulo: Martin Claret, 2003. 









POR QUE LER OS CLÁSSICOS


Ítalo Calvino é considerado um dos mais importantes escritores da Literatura italiana do século XX. Neste livro, Calvino discute a importância da leitura dos clássicos e apresenta uma coletânea de ensaios, nos quais oferece ao leitor suas impressões acerca das obras literárias de grandes escritores, como: Xenofonte, Ovídio, Flaubert, Hemingway, Stendhal, Balzac, Dickens, Tolstoi, Jorge Luis Borges, entre outros.

Segundo Calvino há 14 bons motivos para lê-los. Cabe ao leitor escolher o (s) seu (s). Ei-los:

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...".
2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como insconsciente coletivo e individual.
4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.
6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.
9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.
10.Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.
11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.
12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.
13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.
14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Trad. Nilson Moulin.

FILME VERSÃO 2009 - O RETRATO DE DORIAN GRAY








Em sua décima versão para o cinema, o filme retrata bem as aventuras e desventuras do jovem Dorian Gray na sociedade londrina do século XIX, o qual influenciado pelo aristocrata cínico e com uma visão de mundo hedonista, Lord Henry Wotton, se entrega a uma vida de prazeres. Embora não siga religiosamente o enredo do livro (prática normal numa adaptação de romance para cinema), o filme mantém a essência da história, calcada na ruína e na destruição do jovem pela sua própria beleza.

Como em toda adaptação que se preze, são mantidas as principais cenas da história, porém com algumas mudanças e outras são acrescentadas. Dorian Gray chega a Londres e conhece Basil Hallward em uma recepção da sociedade londrina e o pintor sente uma espécie de obsessão pela beleza do rapaz, considerando-o um novo estilo de arte para sua obra. No filme, Basil Hallward quer mostrar o retrato de Dorian em uma exposição da qual vai participar, mas Dorian não deixa. 

No livro, Basil se recusa a expor o quadro, mesmo incentivado por Lord Henry, porque diz que retratou-se a si mesmo pintando Dorian, demonstrando uma paixão pelo jovem. E, além disso, não quer que Lord Henry conheça o rapaz, temendo a influência que o amigo exercerá sobre ele, ao contrário do filme, em que todos se encontram nesta recepção.

Assim ao travarem conhecimento, Lord Henry trata imediatamente de expor suas ideias para o jovem, com frases como:

Ceder a uma tentação é a única maneira de nos libertarmos dela. (p. 16)
A juventude é a única coisa que vale a pena ter. [...] Agora, aonde quer que vá consegue seduzir todas as pessoas. Mas será sempre assim? Tem um rosto de beleza deslumbrante, Mr. Gray. (p.18)
Viva, viva a vida maravilhosa que existe em si! Não desperdice nenhuma oportunidade, procure sempre novas sensações. (p. 19)
Ah, juventude... juventude! Não há mais nada absolutamente no mundo senão a juventude. (p. 20)

Inicialmente, frustrando as expectativas de Lord Henry, o jovem se apaixona pela bela atriz de teatro Sibyl Vane, com quem pensa em se casar. Mas absorvendo cada vez mais as ideias de seu mentor, Dorian Gray a abandona, após experimentar os prazeres proporcionados pela vida noturna nos clubes e pubs de Londres. No livro, esse abandono acontece após a encenação de Romeu e Julieta, a qual ele e os amigos, Lord Henry e Basil Halward vão assistir. A moça numa noite extremamente desfavorável tem uma péssima atuação e isso decepciona profundamente a imagem que o rapaz tem dela, desinteressando-o instantaneamente. Em profundo desespero, ela se suicida nesta mesma noite em seu camarim. No filme o suicídio é cometido, jogando-se no rio Tâmisa.

Dorian então continua a viver uma vida de intensos prazeres na sociedade londrina, até que passa a se sentir perturbado com seu próprio retrato, pintado por Basil Hallward. Arranca-o da parede e o esconde numa sala escura, trancafiando-o. No livro o jovem se afasta do pintor por alguns anos e um dia encontra-o por acaso na rua, com uma mala de viagem, seguindo para a estação. Vão até a casa de Dorian e lá o artista o põe a par de tudo o que falam dele nos círculos londrinenses. Os dois discutem e o jovem leva o pintor para ver sua obra de arte coberta por um pano na sala escura, dizendo que a culpa de tudo é do retrato que este fizera dele, o qual envelhece-o dia após dia.

Ao arrancar o pano que o cobria, Basil Hallward fica horrorizado ao se deparar com um rosto totalmente mutilado e cada vez mais envelhecido, completamente diferente do rosto jovem e belo que havia pintado. Tomado de uma poderosa cólera, Dorian Gray avança para o pintor e o mata, esfaqueando-o na jugular, deixando o corpo na sala. No filme ele esquarteja o corpo, coloca dentro de uma mala e atira os pedaços no rio.

Após este episódio, o jovem parte de Londres para passar uma temporada fora. Ao voltar se envolve e casa com a filha de Lord Henry (que sequer aparece no livro), que não gosta nada da ideia. Curioso em saber o que Dorian Gray fizera com o retrato, numa noite de recepção na casa do rapaz, ele entra na sala secreta onde se encontra a obra de arte e Dorian desesperado o segue. Ele retira o pano de cima do quadro e o contempla aterrorizado. Dorian parte para cima dele e eles lutam. Lord Henry consegue escapar e o tranca dentro da sala. O retrato e o modelo morrem consumidos pelas chamas.

Já no livro ele recebe um livro de presente de Lord Henry, sobre um jovem parisiense e sua vida na sociedade local, uma história que se aproxima bastante da do próprio Dorian Gray. Cada vez mais perturbado com o conteúdo da obra, a qual lhe desencadeia lembranças do passado, entre elas a morte de Basil, Dorian se suicida com uma punhalada no coração, enquanto a beleza de sua juventude é transferida novamente para o retrato.

Enfim, apesar das pequenas diferenças entre um enredo e outro, a adaptação dirigida pelo diretor Oliver Parker agrada e mantém a essência da obra original, o que é o mais importante.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Controljornal, 2000. Trad. Maria de Lurdes Souza Ruivo. (meio eletrônico)