Neste livro, Elias Canetti faz um estudo da obra kafquiana através da compilação da correspondência que o escritor mantinha com Felice, uma de suas noivas, com quem não chegou a se casar. Estas cartas revelam os múltiplos conflitos interiores de Kafka: suas inseguranças, medos, complexos, a difícil relação com o pai, a hipocondria, o gosto pela solidão, a obsessão em relação à sua aparência física, entre outros. Pode-se dizer que são verdadeiros espelhos da alma humana.
Ao mergulhar no universo particular de Kafka temos a impressão de que estamos diante de um indivíduo enredado em um complexo de inferioridade devastador, que se estende por todos os lados na solidão de um quarto escuro e fechado, lutando contra todos os seus fantasmas e tendo como uma das poucas válvulas de escape as cartas remetidas à então noiva, nas quais expõe todos os seus conflitos anímicos.
Kafka se revela completamente obcecado pela constatação de sua falta de atributos físicos, pois segundo ele mesmo: "sou a pessoa mais magra que conheço". Isto o incomodava de tal forma, que se sentia inapto para exercer qualquer tipo de atividade, seja em termos de lazer ou profissionalmente frente à grande força física de seu pai, pela qual sentia indisfarçável inveja.
Em Carta a meu pai, o escritor discorre sobre a tumultuada relação que mantinha com seu pai, visto que segundo ele, seu tipo físico e psicológico não o agradava, pois era um homem forte fisicamente e empreendedor, com grande capacidade para a liderança e o autoritarismo. Kafka nem de longe possuía uma ou outra dessas características em comum com a figura paterna. Ao contrário. Kafka era franzino, de constituição física fraca, taciturno, hermético e sensível, como ele mesmo explica neste trecho:
Compara-nos a ambos: eu sou, para dizê-lo em breves palavras, um Löwy com certo fundo kafquiano, a quem, contudo, não impele essa vontade tipicamente kafquiana de viver, comerciar e conquistar, porém um aguilhão löwitico, que age em outra direção, mais escondido, mais tímido e que com freqüência se interrompe completamente. Tu, em troca, és um verdadeiro Kafka, em força, saúde, apetite, potência de voz, talento oratório, auto-satisfação, superioridade mundana, perseverança, presença de espírito, experiência e certa amplitude de vistas, claro que com os defeitos e as fraquezas que correspondem a todas estas virtudes e aos quais te levam teu temperamento e por vezes teu mau gênio. (KAFKA, p. 79, 2003)
Seu pai via nisso sinais de desvios de personalidade, por vezes acusando-o de homossexualismo, pois considerava um comportamento inadequado para um homem e por isso, o humilhava constantemente diante de todos, exaltando e criticando seus pontos mais vulneráveis. Para a personalidade introvertida do escritor isso soava como rejeição paterna e exposição de sua figura ao ridículo, o que contribuía ainda mais para o desenvolvimento de um complexo crescente de inferioridade e hipocondria em relação à sua magreza.
Kafka foi ao longo de sua vida seguidamente ridicularizado e desencorajado pelo pai em todos os projetos que se propunha a realizar, inclusive em seus planos de casamento. Seu pai fazia questão de ressaltar sua incapacidade de levar adiante seus projetos, demonstrando uma espécie de prazer mórbido em destruir os sonhos do rapaz e ferir ainda mais a sua já escassa autoestima. Nas epístolas compiladas por Canetti, percebemos em Kafka a necessidade de transmitir para outros a responsabilidade de tomar decisões, que deveriam partir dele. O escritor revelando um lado manipulador incita a noiva a se posicionar contra ele a fim de que com esta atitude o encoraje a realizar seus projetos. Mas mesmo assim Kafka não consegue ir até o fim, permanecendo num eterno movimento de vai-e-vem, de avanço e recuo. Há algo em Kafka muito profundo que o impede de continuar firme no seu propósito de casamento com Felice após cinco anos de um relacionamento confuso e obscuro.
Nota-se ainda em Kafka o medo de se expor e, por isso, sua obra é o retrato fiel de sua personalidade obscura, taciturna e estranha até para ele próprio tão bem transfigurada no inseto de A metamorfose. Outro motivo para Kafka ter-se autorretratado em A metamorfose é o fato de que devido a seu complexo de inferioridade em relação ao mundo e aos seus semelhantes, ele próprio considerava-se um "inseto", quando se referia às suas atividades burocráticas, uma vez que atuara no comércio e nos serviços públicos.
Para Kafka essas atividades limitavam sua capacidade criativa, daí a comparação com um inseto. Embora não seja explicitada na obra a que tipo de inseto Kafka se refere cabe interpretá-lo como uma barata, já que o escritor deixa algumas pistas durante a narrativa, utilizando-se de um recurso que tem por objetivo causar suspense e estranheza, típicos da personalidade kafquiana. Assim, para exprimir esse sentimento de isolamento do mundo e repugnância contra si mesmo, a barata parecia ideal por ser um tipo de inseto que vive nos subterrâneos e está vinculada à degradação, à sujeira, despertando por isso, asco nas pessoas e o desejo de livrar-se logo do animalzinho.
Além disso, como já citado anteriormente, sua constituição física desprovida de gordura e massa muscular acentuava ainda mais a necessidade de diminuir-se diante dos outros, o que lhe dava a sensação de não pertencer ao mundo dos vivos, mas sim dos mortos. Vê-se que tudo contribuía para a decadência física e literária de Kafka, entretanto, é na e através da Literatura que ele conseguirá encontrar sua válvula de escape, tornando-se um dos maiores autores clássicos. A obra de Canetti é mais um estudo que visa compreender os mistérios que envolvem a intimidade deste "autor-inseto" e, por consequência, os mistérios intrigantes presentes na literatura kafquiana sob a ótica da personalidade complexa de seu autor.
Configura-se, pois, em um bom caminho para entender o universo de Kafka.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANETTI, Elias. O outro processo: as cartas de Kafka a Felice. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
KAFKA, Franz. A metamorfose / Um artista da fome / Carta a meu pai. Trad. Pietro Nassetti e Torrieri Guimarães. 1 ed. São Paulo: Martin Claret, 2003.
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