32 - EPIFANIA - ENSAIOS




David Lodge, além de professor aposentado de Literatura da Universidade de Birmingham, é também um dos mais relevantes escritores da moderna literatura inglesa, tendo sido nomeado por duas vezes para o prêmio literário Man Booker Prize (criado em 1968), um dos mais importantes do Reino Unido.  

Aqui o ensaio 32, intitulado Epifania, do seu A arte da ficção, livro com 50 ensaios em que discorre sobre as várias facetas acerca da criação literária, em especial o romance. 

Eles chegam até o tee, uma plataforma coberta por grama ao lado de uma árvore frutífera corcunda oferecendo punhados de flores pálidas ao botão. "É melhor eu começar", diz Coelho. "Até você se acalmar um pouco". O coração dele silencia, para entre uma batida e outra, de raiva. Só o que lhe importa é sair dessa enrascada. Queria que chovesse. Enquanto evita o olhar de Eccles, observa a bola, que está no alto do tee e parece flutuar acima do chão. De modo simples ele gira a cabeça do taco sobre o eixo do ombro e acerta o alvo. O som tem uma secura, uma peculiaridade que ele nunca ouviu antes. Os braços empurram sua cabeça para cima e a bola vai longe, em uma palidez lunar contra um lindo tom azul-escuro das nuvens de tempestade, a cor de seu avô, que se espalha, densa, pelo oriente. A trajetória é reta como uma régua. O acerto; a esfera, a estrela, o espaço. A bola hesita, e Coelho pensa que ela vai morrer, mas se engana, pois esta faz da hesitação o motivo de um último salto: com um visível soluço, ganha mais alguns centímetros antes de sumir na queda. "É isso aí!", grita, e, virando-se para Eccles com um sorriso engrandecedor, repete: "É isso aí".  John Updike - Coelho corre (1960)

Uma epifania é, literalmente, uma aparição. Na terminologia cristã, o termo denota a aparição do Menino Jesus aos três Reis Magos. James Joyce, um católico apóstata para quem a escrita era como que uma vocação profana, aplicou a palavra ao processo mediante o qual um acontecimento ou um pensamento comum se vê revestido de uma beleza perene graças ao trabalho do escritor: "quando a alma do objeto mais comum parece-nos radiante", conforme disse seu alter ego ficcional, Stephen Dedalus. 

Agora o termo é usado em referência a qualquer passagem descritiva em que a realidade exterior apareça carregada de um significado transcendental para quem o percebe. Na ficção moderna, ao funcionar como clímax ou resolução de uma história ou episódio, a epifania assume o papel que era desempenhado pelas ações decisivas na narrativa tradicional. O próprio Joyce nos mostrou o caminho. Muitas das histórias de Dublinenses parecem acabar com um anticlímax -- derrotas, frustrações ou acontecimentos triviais --, mas a linguagem transforma o anticlímax em um momento de revelação para o protagonista ou para o leitor, ou até para ambos. 

Em Retrato do artista quando jovem, a visão de uma garota andando no mar com a saia levantada transforma-se, graças aos ritmos e às repetições de estilo, em uma visão transcendental da beleza profana que reafirma a determinação do herói em dedicar-se à arte, em detrimento da religião:

O vestido azul-ardósia estava preso com vigor em torno à sua cintura e firme em suas costas. O seio era macio e escasso como o dos pássaros, macio e escasso como o peito de uma ave de plumagem escura. Mas os longos fios loiros eram femininos: e feminino, e agraciado com a beleza mortal, o rosto. 

A passagem retirada do primeiro romance com o personagem Coelho, de John Updike, descreve uma ação em uma disputa, mas é a intensidade do movimento o que importa, não sua consequência (não ficamos sabendo se o herói acertou o buraco). Harry "Coelho" Angstrom é um jovem preso a um emprego sem nenhuma perspectiva no interior dos Estados Unidos e a um casamento morto, em termos eróticos e afetivos, após o nascimento do primeiro filho. O personagem tenta, sem sucesso, escapar a essa existência sufocante, mas não vai além dos braços de uma outra mulher. 

O pastor local, Eccles, convida-o a jogar uma partida de golfe, que serve como pretexto para aconselhá-lo a voltar para a esposa. Coelho, que trabalhou como carregador de tacos quando menino, conhece os rudimentos do jogo, mas com a tensão do momento sua primeira tacada "sai de lado, perturbada por um topspin perverso que a faz cair como um bloco de argila", e seu desempenho não melhora com o sermão de Eccles. "Por que você a abandonou?" "Eu já disse. Faltava alguma coisa". "Mas o quê? Você já viu essa coisa em algum lugar? Tem certeza que ela existe? [...] É dura ou macia? Harry, é azul? Vermelha? Com bolinhas?" Aborrecido pela ironia das perguntas empíricas de Eccles, Coelho encontra sua resposta ao acertar, por fim, uma tacada perfeita. 

As epifanias são o momento em que a prosa ficcional mais se aproxima da intensidade verbal que caracteriza a poesia lírica (boa parte da lírica moderna, aliás, é feita de epifanias); de modo que a descrição epifânica tende a ser rica em figuras de linguagem e sons. Updike é um escritor com um dom incrível para metáforas. Mesmo antes de chegar ao tema principal do parágrafo ele define o cenário, sem esforço algum, com uma descrição vívida da árvore frutífera e dos "punhados de flores pálidas em botão" que insinuam a um só tempo o antagonismo do momento e a promessa de uma salvação.

Mas a descrição da tacada é propositalmente literal. "De modo simples ele gira a cabeça do taco sobre o eixo do ombro e acerta o alvo" soa como um jogador profissional descrevendo um swing bem executado. "O som tem uma secura, uma peculiaridade que ele nunca ouviu antes". A transformação dos epítetos seco e peculiar em substantivos abstratos confere a eles uma aura misteriosa. Mas a linguagem envereda pelo caminho da metáfora: "a bola vai longe, em uma palidez lunar contra o lindo azul-escuro das nuvens de tempestade" -- imagens cósmicas e astronômicas que reaparecem mais tarde em "a esfera, a estrela, o espaço".

A acrobacia mais audaciosa em termos de linguagem fica para o fim: justo quando Coelho acha que a bola vai parar, ela "faz da hesitação o motivo de um último salto: com um visível soluço, ganha mais alguns centímetros antes de sumir na queda". A sinestesia (mistura de sentidos) de "visível soluço" poderia parecer sofisticada demais para ser aplicada a uma bola de golfe se não aparecesse no ponto alto da descrição. Quando Coelho se vira para Eccles e grita, em tom triunfante, "É isso aí!", ele está respondendo à pergunta do pastor sobre o que falta em seu casamento. Mas há uma certa transcendência religiosa na linguagem aplicada à bola de golfe ("o motivo de um último salto" parece uma frase da teologia existencialista moderna) que faz um comentário velado sobre a falta de fé verdadeira do próprio Eccles. Talvez também escutemos no grito de "É isso aí!" um eco da satisfação justificada do escritor ao revelar, por meio da linguagem, a alma radiante de uma tacada inicial bem dada.


BIBLIOGRAFIA:

LODGE, D. A arte da ficção. Trad. Guilherme da Silva Braga. 1 ed. Porto Alegre: L&PM, 2010. 

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