O DE PROFUNDIS OU AS PROFUNDEZAS DE OSCAR WILDE



     


Oscar Wilde foi dono de uma personalidade bastante controversa. Após um casamento desfeito e uma série de envolvimentos sexuais com rapazes mais jovens na conservadora Londres do século XIX, em especial com o playboy da época Alfred Douglas, por quem se apaixonaria perdidamente a ponto de cometer diversas extravagâncias e indiscrições em público, o escritor foi acusado de sodomia pelo pai do rapaz e levado a julgamento em abril de 1895. 

Tendo recebido o veredito de culpado, acabou por ser preso e condenado a dois anos de trabalhos forçados em 25 de maio de 1895. Inicialmente enviado para a prisão de Wandsworth, Wilde julgava-se incapaz de suportar tamanho sofrimento. 

Algum tempo depois foi transferido para o Cárcere de Reading, onde já no final da estadia na prisão, escreveu uma longa carta chamada De profundis endereçada ao ex-amante Bosie (codinome de Alfred Douglas nas altas rodas londrinas), somente publicada após sua morte em 1905 pelo amigo Robert Ross

Escrita em oitenta páginas em papel azul, Wilde não chegou a revisar a versão final, uma vez que a direção do presídio lhe fornecia uma folha de cada vez, sendo substituída por outra assim que preenchida. Seu desejo era de que o manuscrito fosse enviado para Robert Ross, juntamente com uma carta com instruções sobre o que fazer, porém o rígido regulamento da Presídio não permitiu que seu manuscrito saísse dos portões para fora e, por isso, somente a carta chegou às mãos de Robert

Entretanto, na manhã de 19 de maio de 1897, quando Wilde foi finalmente libertado de seu cárcere, o diretor permitiu entregar a ele seu manuscrito, o qual foi entregue em mãos para Robert Ross, num último encontro entre os dois antes do dândi deixar a Inglaterra rumo à França. Assim, uma cópia foi feita seguindo as instruções de Wilde. E, apesar, de ser endereçada a Bosie, este recebeu apenas uma cópia datilografada, pois Ross temia que ele a destruísse, o que acabou acontecendo mais tarde, acreditando ser aquela a única cópia existente a fim de evitar uma situação embaraçosa para si. 

Após o rompimento com Ross anos mais tarde, em 1909, Bosie descobriu que existia um manuscrito original em posse daquele e pediu que lhe fosse entregue, uma vez que havia sido endereçado a ele, pois pretendia lucrar com a venda do documento, como já fizera antes com outras missivas de Wilde. Porém, Ross lacrou o manuscrito e o doou para o Museu Britânico com a condição de permanecer assim por sessenta anos. 

Em 1912, Douglas se aborreceu com alguns trechos de um estudo feito por Arthur Ramsone sobre Wilde e entrou com uma ação na justiça contra Ramsone com o intuito de também prejudicar Ross através da leitura da carta de Wilde tida como prova principal e endereçada a ele. Julgado em 1913, o caso foi favorável a Ramsone e a epístola voltou para o Museu. 

Uma vez que a defesa se baseava na carta de Wilde, Bosie receberia uma cópia dela, anunciando logo em seguida que a publicaria na América (já que não podia publicá-la na Inglaterra), incluindo seus próprios comentários. Ross então, enviou a carta para Nova York a fim de imprimir dezesseis cópias para garantir os direitos de publicação na América e impedir Douglas de conseguir seu objetivo. O livro ficou pronto em dez dias e dos dezesseis exemplares, quinze foram remetidos para a Inglaterra para distribuição entre amigos de Wilde e bibliotecas. O último exemplar foi colocado à venda na sala de exposições do editor, seguindo a lei americana que rege o copyright, tendo seu preço fixado em cinco mil dólares, o qual não demorou a ser arrematado por um comprador anônimo. 

A cópia original voltou à Inglaterra e com a morte de Ross em 1918, foi parar nas mãos do filho de Wilde (Vyvyan Holland), tendo o manuscrito original permanecido no Museu Britânico provavelmente até os dias de hoje, uma vez que as autoridades jamais permitiram o acesso a ele. Finalmente, em 1936 sugeriu-se que era a hora de publicar a carta na íntegra, obtendo-se a permissão de Douglas, que a retirou logo depois quando as negociações já estavam bastante adiantadas. Somente após sua morte em 1945 é que finalmente foi possível a publicação da obra na Inglaterra. 

Nesta missiva Wilde relata toda a sua mágoa e decepção com a conduta do rapaz, tecendo pesadas acusações ao seu caráter, além de fazer uma profunda reflexão sobre sua trajetória, como é possível perceber no excerto abaixo:

Os deuses tinham me oferecido quase tudo. Tinha conhecimento, um nome reconhecido, uma posição social elevada, brilho, coragem intelectual; tinha feito da arte uma filosofia e da filosofia uma arte; tinha alterado a mente dos homens e a cor das coisas; não havia nada que eu dissesse ou fizesse que não levasse as pessoas a interrogarem-se; peguei na tragédia, a mais objetiva forma conhecida em arte, e tornei-a um modo de expressão tão pessoal como a lírica ou o soneto, ao mesmo tempo que alargava o teu âmbito e enriquecia a tua caracterização: drama, novela, poema rimado, poema em prosa, diálogo sutil ou fantástico, tudo aquilo em que tocasse tornava-o belo, com uma nova forma de beleza; dei à própria verdade, como tua província de direito, aquilo que é falso, não menos do que aquilo que é verdadeiro, e mostrei que o falso e o verdadeiro nada mais são do que formas de existência intelectual. Tratei a Arte como a realidade suprema, e a vida como um mero modo de ficção; despertei a imaginação do meu século de tal modo que ela criou mitos e lendas à minha volta; resumi todos os sistemas numa frase, e toda a existência num epigrama. 

Ao lado de tudo isso, tinha coisas diferentes. Deixei-me atrair para extensos períodos de facilidade sensual e sem sentido. Diverti-me a ser um flâneur, um orgulhoso, um homem da moda. Rodeei-me das naturezas menores e das mentes mais baixas. Tornei-me o dissipador do meu próprio gênio, e desperdiçar uma juventude eterna dava-me um curioso contentamento. Cansado de estar nas alturas, desci deliberadamente até o nível mais baixo, à procura de novas sensações. O que a contradição era para mim na esfera do pensamento, tornou-se para mim a perversidade na esfera da paixão. Por fim, o desejo era uma doença, ou uma loucura, ou ambas. Tornei-me descuidado em relação à vida dos outros. Retirava prazer daquilo que me agradava, e continuava. Esqueci-me de que todas as pequenas ações do dia a dia constroem ou destroem uma personalidade, e que, deste modo, aquilo que se fez no segredo do quarto, terá um dia de ser dito em voz alta no topo dos edifícios. Deixei de ser Senhor de mim. Já não era o Comandante da minha alma, e não o sabia. Permiti que tu me dominasses e que o teu pai me assustasse. Terminei em horrível desgraça. Agora só há uma coisa para mim, nesta altura, a absoluta Humildade; tal como agora só há uma coisa para ti, também a a absoluta Humildade. Teria sido melhor que descesses até o pó e aprendesses as coisas a meu lado.

Há quase dois anos estou na prisão. A minha natureza produziu em mim um desespero selvagem; um abandono à dor que fazia pena ver; uma raiva terrível e impotente; amargura e desprezo; angústia que chorava alto; miséria que não encontrava voz, mágoa que era muda. Passei por todos os estados possíveis do sofrimento. Sei melhor do que o próprio Wordsworth o que Wordsworth queria dizer quando escreveu: O sofrimento é permanente, obscuro, e negro. E tem a natureza do Infinito. (WILDE, p. 70-71, 2003)

Exilando-se em Berneval, uma pequena vila pesqueira na costa da França sob o nome de Sebastian Melmoth, após sua libertação, Wilde caiu em ostracismo para o resto de seus dias. Chegou mesmo a reatar o relacionamento com Bosie por três meses, quando viveram juntos em Posillipo. Porém, devido à embriaguez constante e aos maus hábitos, seu círculo de amigos diminuía cada vez mais, até que em 30 de novembro de 1900, o escritor e dramaturgo morreu solitariamente num pequeno e imundo quarto de hotel em Paris, onde passara a morar. 

Uma leitura dolorosa e angustiante daquele que foi por algum tempo o centro das atenções da sociedade londrina de sua época e fez de sua obra um marco na Literatura Universal. 


BIBLIOGRAFIA:

WILDE, O. De profundis/Balada do cárcere de Reading. Trad. Jean Melville. 1 ed. São Paulo: Martin Claret, 2003. 

WILDE, O. De profundis e outros escritos do cárcere. Trad. Júlia Tettamanzi; Maria Angela Saldanha Vieira de Aguiar. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2011. 

                                                                                                        

Nenhum comentário:

Postar um comentário